O município de Pereira Barreto, no interior de São Paulo, deu um passo histórico ao aprovar uma lei que autoriza a regulamentação do uso medicinal do canabidiol. A proposta, de autoria do vereador Daniel da Rádio, foi votada e aprovada na noite da última segunda-feira (13), após intensa mobilização popular e debates entre os parlamentares. Com a decisão, Pereira Barreto se tornou a primeira cidade da região de Araçatuba a avançar com esse tipo de legislação, enquanto o tema ainda enfrenta resistência nos níveis estadual e federal.
A mobilização começou por volta das 17h, quando a advogada Nídia, mãe de uma criança com autismo e integrante do grupo GAMA, recebeu um alerta no grupo de WhatsApp da associação. A mensagem, enviada pelo próprio vereador Daniel, informava que o projeto corria o risco de ser adiado e convocava os apoiadores a irem até a Câmara Municipal. A resposta foi imediata: mães do GAMA e representantes da APAE local se dirigiram ao plenário para pressionar pela votação.
Nos bastidores, Daniel articulou votos favoráveis com os vereadores Fábio José França, Luiz Guilherme, Maércio e Li Carvalho. O presidente da Câmara, Fábio Akira, que também integra o grupo, não foi procurado diretamente. Por outro lado, os vereadores Nilson, Gilberto Marques e Daniel Sodinha não se manifestaram sobre a proposta. Já Valéria e Neto demonstraram resistência, alegando pressões de lideranças religiosas contra o avanço do projeto.
Às 19h30, as mães chegaram à Câmara e começaram a dialogar com os parlamentares. Nídia e Lia, outra mãe atípica, questionaram diretamente os vereadores que pretendiam adiar a votação. Houve um momento de tensão entre Nídia e a vereadora Valéria, mas o confronto permaneceu dentro dos limites do respeito. O pedido formal de adiamento por seis semanas foi levado ao plenário, mas acabou rejeitado.
Durante a sessão, Daniel da Rádio teve dez minutos para defender o projeto. Ele explicou que o texto havia sido debatido com a Secretaria de Saúde e com o prefeito, e que o objetivo principal era permitir que o município regulamente o fornecimento gratuito de medicamentos à base de cannabis pelo SUS. Exibindo um frasco de medicamento, o vereador alertou para os custos elevados do tratamento, que podem ultrapassar R$ 1 mil, e destacou que “esse remédio salva vidas”.
Apesar das divergências, todos os vereadores votaram a favor da proposta. O vereador Neto declarou que votava “com o coração, mas sem convicção”. A sessão foi acompanhada por mães que filmaram e aplaudiram a aprovação. Uma delas leu uma carta comovente relatando a melhora do filho após iniciar o uso do canabidiol.
A iniciativa foi inspirada na Lei 17.618/2023, do estado de São Paulo, de autoria do deputado estadual Caio França (PSB), que institui a política de fornecimento gratuito de medicamentos à base de cannabis pelo SUS estadual. França é coordenador de uma frente parlamentar que reúne parlamentares, médicos, pesquisadores, associações e representantes da indústria da cannabis. Ele também é autor do Projeto de Lei 563/2023, que propõe o cultivo de cannabis por universidades e institutos públicos para fins medicinais e científicos.
Segundo o deputado, os principais entraves hoje são a limitação das doenças contempladas nas políticas públicas e a ausência de uma regulamentação nacional sobre o cultivo da planta. A repercussão da lei paulista já inspirou propostas semelhantes em mais de 20 estados, e também impulsionou a criação de clínicas públicas especializadas, como a de Ribeirão Pires.
Foi a partir de uma reportagem sobre o tema que o vereador Daniel decidiu levar a proposta adiante em Pereira Barreto. “Eu apoio o deputado Caio França na minha cidade e na região. Já vínhamos falando sobre o assunto, mas a matéria me motivou a agir de forma mais direta”, explicou o parlamentar.
No âmbito federal, o debate segue fragmentado. O Projeto de Lei 399/2015, aprovado por comissão especial da Câmara, propõe a regulamentação do cultivo para fins medicinais e industriais, mas permanece parado no Plenário. No Senado, o PL 5511/2023, da senadora Mara Gabrilli, e o PL 89/2023, de autoria do senador Paulo Paim, tratam do fornecimento de cannabis medicinal pelo SUS e da criação de um marco regulatório. Em 2024, o Superior Tribunal de Justiça determinou que a Anvisa regulamente o cultivo de cânhamo medicinal no prazo de seis meses, embora a decisão não trate diretamente do uso industrial.
Estudos como o do Instituto Ficus mostram que o Brasil tem potencial para desenvolver uma cadeia produtiva de cânhamo industrial robusta, mas que esse avanço ainda esbarra na falta de regulamentação federal.
Com a aprovação da lei em Pereira Barreto, a cidade se tornou um símbolo de resistência e avanço regional. Após a sessão, mães do GAMA participaram de um programa de rádio ao lado do vereador Daniel. Emocionada, Nídia agradeceu: “Você foi muito bem. Muito obrigada pelo apoio”. Agora, o texto aguarda sanção do prefeito Hermínio Komatsu, que já sinalizou ser favorável à proposta. A Prefeitura, no entanto, ainda está elaborando o decreto que regulamentará o uso medicinal do canabidiol no município.