Em um episódio que reflete as incongruências da legislação proibicionista brasileira, um homem de Goiânia (GO) registrou um boletim de ocorrência após ser enganado ao tentar comprar 30 gramas de maconha por R$ 210. A queixa foi feita no dia 28 de fevereiro e, surpreendentemente, acabou levando o próprio comprador a ser intimado pela polícia.
O consumidor alegou que foi vítima de um golpe e que o fornecedor da cannabis “agiu de má-fé” ao não entregar o produto. Em sua declaração, enfatizou que, embora o fornecimento da erva seja considerado ilegal no Brasil, a relação comercial deveria seguir princípios de boa-fé. Ele ressaltou ainda que muitas pessoas dependem da cannabis para fins medicinais, como é o seu caso.
“Muito embora a atividade dele seja considerada ilícita, e o uso da substância não seja criminalizado, a boa-fé deve ser mantida. Como não foi, estou registrando o boletim para averiguação desse indivíduo que tem passado a perna em cidadãos que utilizam a cannabis, seja de forma recreativa ou medicinal”, disse ele no documento.
O delegado Humberto Teófilo, que estava de plantão no momento do registro, demonstrou surpresa com o caso. “Em 15 anos de polícia, acho que nunca vi uma ocorrência como essa”, afirmou.
Mais do que uma curiosidade, o caso expõe a falha da política proibicionista, que empurra consumidores para o mercado clandestino e os deixa vulneráveis a golpes e riscos desnecessários. Em países onde o uso de cannabis é regulado, como Uruguai e Canadá, situações como essa são impensáveis, pois a compra ocorre em estabelecimentos licenciados, garantindo qualidade e segurança ao consumidor.
Apesar de o registro ter sido feito para denunciar um golpe, o consumidor pode acabar respondendo por “comunicação falsa de crime”. O artigo 340 do Código Penal prevê pena de seis meses a um ano de prisão para quem aciona autoridades de maneira indevida. A polícia identificou o denunciante e ele será ouvido no próximo sábado.
Curiosamente, a quantidade de cannabis envolvida na transação — 30 gramas — está dentro do limite recentemente estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para diferenciar usuário de traficante. Em 2024, o STF definiu que quem porta até 40 gramas de maconha ou possui até seis plantas fêmeas para consumo pessoal não deve ser criminalizado. No entanto, a interpretação final ainda depende das autoridades envolvidas no caso.
“Este episódio em Goiânia é emblemático das complexidades do mercado ilegal de drogas no Brasil. A recente descriminalização do porte de maconha para uso pessoal pelo STF deveria, em tese, reduzir a criminalização de usuários. No entanto, situações como esta, onde um usuário busca a polícia para cobrar a entrega de droga adquirida ilegalmente, evidenciam as contradições e desafios do sistema jurídico atual”, pontua a advogada Marina Gentil.
O episódio reforça a necessidade de regulamentação da cannabis no Brasil, para que casos como esse não se tornem parte do nosso cotidiano. Sem uma política de legalização, consumidores continuam expostos a situações absurdas e a um sistema que perpetua injustiças.