Se algo pode ser chamado de necropolítica com toda razão é a atual política antidrogas. E os agentes de saúde pública têm uma grande responsabilidade nisto, que não pode ser ignorada.
São milhares de mortes e milhões de vidas e famílias destruídas todos os anos em nome da guerra contra as drogas. Um terror constante e uma propaganda contínua fazem a população adotar a violência social extrema como a resposta necessária para um problema fictício.
Não existe um grave problema de saúde pública causado por drogas ilícitas no Brasil.
Mas a ideologia dominante faz parecer que se não houver uma guerra, contínua e sem limites de violência, contra as pessoas envolvidas com drogas, as famílias e a sociedade serão destruídas pela dependência química e pelo uso abusivo, especialmente por parte dos jovens e adolescentes. Haveria um risco elevadíssimo de dano grave à saúde pública e ao próprio sistema social se não houvesse essa guerra civil não declarada, mas contínua.
Falso, isto é falso. Isto é fake news. E assumir isto como uma verdade, repetindo sem parar na cabeça dos nossos jovens e da população em geral, é uma grande irresponsabilidade de todos os formadores de opinião sobre drogas.
Religiosos, agentes de segurança, educadores, influencers digitais e membros da imprensa, todos estes têm o direito de esconder o seu preconceito e a sua má-fé sob o manto da ignorância. Mas os agentes de saúde não. Os agentes de saúde pública não podem esconder as suas posições absurdas e estúpidas nas brumas do desconhecimento. Eles têm a obrigação de saber e são, por isto mesmo, os principais responsáveis (ou, irresponsáveis, se você preferir).
Não é possível ignorar a imensa desproporção entre os danos causados pela guerra às drogas e pelas drogas permitidas em relação aos danos causados pelas drogas proibidas. A opinião pública pode não saber, ou fingir que não sabe, mas os agentes de saúde, especialmente da saúde pública, não podem pretender ignorar que as drogas legais e a guerra às drogas causam muito mais mortes e muito mais dano à saúde pública e à vida social em geral, do que as drogas proibidas. E se eles não podem ignorar esta realidade, mas, ainda assim, se posicionam em alinhamento e dão base para a atual política de drogas no nosso país, é porque os nossos agentes e instituições de saúde pública estão sendo omissos e realmente coniventes com tudo isto.
Nesta questão das drogas, os representantes ciência e da medicina, as instituições de saúde pública do nosso país (e mundo afora) têm cedido, sistematicamente e por décadas, ao preconceito moral e religioso e às necessidades de controle social do sistema, em vez de exercerem suas funções com a responsabilidade técnica requerida. Associações e conselhos de medicina, entre outros e, sobretudo, a Anvisa, têm se posicionado de modo irresponsável, sendo parte relevante da sustentação de uma política assassina, sem base científica e sem racionalidade em termos de saúde pública.
Não há razão médica alguma, sob qualquer prisma, em termos toxicológicos, de risco e de dependência, que possa justificar a legalidade das bebidas alcoólicas e do cigarro e, ao mesmo tempo, a ilegalidade da maconha, por exemplo.
O fato é que os casos de dependência, os casos de adoecimento e as mortes por álcool e cigarro sobrepujam aqueles devidos à maconha em uma escala de dezenas de milhares de vezes. Muitos podem raciocinar que isto se deve ao fato que a maconha é menos utilizada por ser proibida e por isto causa menos dano à saúde pública do que as bebidas alcoólicas e o cigarro. O senso comum pode até pensar assim. Mas, não os profissionais de saúde pública. Nós sabemos que isto ocorre justamente porque os canabinoides são infinitamente menos tóxicos e causam menos dependência do que o álcool e a nicotina. A maior disseminação do uso de maconha, na medida em que compete com estas e outras drogas letais, inclusive medicamentos, leva a ganhos e não a perdas de saúde pública.
Portanto, não é apenas agora, ao proibir a importação de flores de maconha para o uso medicinal, que a Anvisa está sendo irracional e contraditória em relação ao seu mandato de defesa da saúde pública. Não, a irresponsabilidade técnica da Anvisa e da institucionalidade médico-científica, em geral, nesta área, vem de muito antes, vem da própria proibição da maconha. Os Conselhos de Medicina também fazem a sua parte nesta cruzada insana e continuam assediando os médicos prescritores de canabinoides, buscando intimidar e impedir a ampliação do acesso aos produtos de maconha (Cannabis) medicinal aqui no Brasil. Recentemente um colega médico prescritor de Cannabis foi preso e, até onde eu sei, permanece preso, de modo arbitrário, enquanto escrevo este texto.
Parece que agora há um grande esforço para se tentar separar o uso medicinal dos canabinoides do seu uso recreacional ou social. Acreditam que a regulamentação deve buscar traçar limites rigorosos para separar a medicina da droga.
Isto é uma tolice e uma burrice, com consequências trágicas.
Não é possível separar completamente os usos medicinais e sociais ou recreacionais da erva e de seus derivados. E não há justificativa objetiva para a proibição da maconha de modo algum.
Ao proibir e criminalizar um agente neuro e psicoativo de baixo risco e permitir o livre uso de outros de risco muito mais alto, a Anvisa e toda a institucionalidade médica atuam contra o seu mandato social e contra a própria ciência. Por covardia ou por má-fé, sustentam a proibição de algo mais seguro e endossam a liberdade de uso de algo muito mais arriscado e danoso para a saúde e a qualidade de vida das populações. Para se adequarem aos padrões ideológicos e aos preconceitos da sociedade, estas instituições de saúde pública têm que virar as costas e abandonar o seu conhecimento e a sua responsabilidade. E é isto justamente o que elas têm feito ao longo das últimas décadas.
A absurdidade do ponto de vista técnico é cada vez mais evidente e, a cada dia, o equívoco da proibição da maconha em uma sociedade que permite o uso de cigarros e bebidas alcoólicas é mais gritante. Os principais riscos à saúde apontados pelo uso da erva como droga social se mostram inconsistentes e sem comprovação científica. Um bom exemplo é o alegado aumento do risco de esquizofrenia devido ao uso de maconha. Nunca foi suficientemente comprovado e as pesquisas mais recentes indicam que não existe. Ao contrário, a experiência clínica mostra que a maconha, os canabinoides, podem ser um excelente recurso para o tratamento dos casos de esquizofrenia e também para o tratamento dos quadros psicóticos por outras causas, como o autismo e a doença de Alzheimer, por exemplo. Com uma toxicidade também infinitamente mais baixa do que os medicamentos antipsicóticos, correntemente adotados nestes casos.
Só há realmente uma posição médica responsável em relação à regulamentação da maconha e esta é a ampla liberação do seu uso social, além do medicinal. Qualquer coisa diferente disto é uma concessão irresponsável das autoridades e instituições médicas ao preconceito e à ignorância, cuja consequência são dezenas de milhares de prisões injustas e mortes desnecessárias, todos os anos no nosso país.
* Paulo Fleury Teixeira é médico, filósofo e pioneiro no tratamento de autistas com canabinoides. Tem especialidade em medicina preventiva e social e trabalha na clínica e pesquisa com canabinoides e outros enteógenos de origem natural.
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