Home » Colunistas » Neuromaconha e Fitoplasticidade

Neuromaconha e Fitoplasticidade

by contato

A vida é aquilo que já nos aconteceu e afetou antes de percebermos isso claramente, sua erupção em cada ser permite que nosso corpo navegue o universo, apreendendo o mundo e estabelecendo um fluxo de correlação formador da consciência. O cérebro, incorporado ao organismo e conectado ao ambiente por sensações, sentidos e movimentos, pode abarcar o histórico de aprendizado do organismo desde os primeiros estágios de vida. Ainda dentro do útero o bebê acostuma-se ao tom e ritmo da voz materna; as diferenças na entonação do choro de bebês recém nascidos franceses e alemães, compatíveis com os sotaques de cada língua, é um bom exemplo da vasta dinâmica da vida intra uterina e da precoce influência do ambiente na formação do indivíduo .

O ambiente molda a estrutura das redes neuronais, isso, por sua vez, influencia o futuro processamento de estímulos e, assim, a percepção do ambiente. Com o tempo, as experiências tornam-se disposições orgânicas, hábitos e esquemas de interação. Tais redes operam de maneira coordenada, simultânea e envolvem diversas vias de neuromoduladores que interagem entre si conectando as áreas que concentram neurônios especializados.

A palavra plasticidade deriva do radical grego “plaséin” (πλασέιν) que tem como um de seus significados: moldar. Assim, neuroplasticidade é um campo da Neurociência que se debruça sobre os modos de adaptação do cérebro às experiências da vida. Esses processos são detectáveis tanto do ponto de vista funcional, pela mudança do comportamento, quanto estrutural: as redes e conexões do cérebro alternam-se, recombinam-se e reforçam-se a partir das experiências e suas significações, num processo de inter-relação que molda não apenas o conteúdo da caixa craniana mas também é o motor da Evolução.

Edelman, em 1987, propôs a teoria do Darwinismo neural, um processo evolucionário intra individual em que uma parte significativa dos neurônios, inicialmente em excedente, morre nos estágios embrionários tardios e nos primeiros meses após o nascimento, apenas aqueles neurônios ativados em constante interação com o ambiente são selecionados e permanecem. Na infância precoce, são formadas o dobro de sinapses (conexões entre neurônios) que seriam necessárias, um processo de seleção que é também conhecido como poda neuronal. As experiências incorporadas da criança, por sua vez situada no seu mundo, constituem um processo cujos padrões recorrentes selecionam redes neurais em nível microscópico.

Isso desenvolve-se epigeneticamente, ou seja, mediado por processos em que o meio altera a expressão dos genes, num órgão que é estruturalmente complementar ao ambiente do indivíduo. Este processo de seleção molda as redes neurais remanescentes até o final do terceiro ano de vida, no entanto, o cérebro está suscetível a mudanças por toda a existência, partes terminais dos neurônios (os dendritos), responsáveis em grande parte pela comunicação entre as células, podem, até certo ponto, ainda desenvolverem-se ou retroceder e até a formação de novos neurônios em hipocampo (área com forte correlação com a memória) de adultos é possível.

Estudos em humanos e roedores detectaram flutuações nos níveis das moléculas componentes do Sistema Endocanabinóide (SEC), sugerindo um papel importante na dinâmica da poda neuronal. A anandamida apresenta um progressivo, apesar de oscilante, aumento no início da adolescência até a vida adulta, enquanto os níveis de 2-AG são altos tanto no período precoce quanto tardio da adolescência com atenuação importante em sua expressão na fase intermediária.

Alterações marcadas na expressão de anandamida mostraram-se relativamente consistentes no desenvolvimento de regiões cerebrais envolvidas no processamento de emoções, memória e aprendizado, com atividade endocanabinoide proeminente (Lee et al, 2013).Em regiões ligadas ao fenômeno de recompensa e atividades prazerosas, os níveis das mesmas moléculas também apresentam trajetórias únicas de desenvolvimento (Hellgren et al, 2008).

O mesmo sistema que produz moléculas semelhantes às da Cannabis também é responsável pela mediação da comunicação entre vias cerebrais até então atribuídas a outras moléculas como a serotonina e a dopamina. À ambos neuromoduladores é atribuída a função de regulação da plasticidade de longa duração, ou seja, promover a sincronicidade dos neurônios de forma que redes neurais, caminhos por onde passa a corrente elétrica, sejam reforçados. Tal sistema de regulação, por sua vez, é coordenado pelo Sistema Endocanabinóide, suas moléculas e receptores, neste caso particularmente o receptor CB1, que tem a função de mediar essas ligações entre partes do cérebro de maneira rápida e aguda.

O princípio básico de plasticidade é adaptação coerente e otimizada do cérebro em relação à interação com o ambiente. Logo, a plasticidade neural assegura que os ciclos funcionais do organismo e ambiente sejam o mais permeáveis e transparentes possível, desde as formas de relação corporificadas, afetivas e intuitivas, que precedem a comunicação mediada simbólica e verbalmente, até o rebuscado ato de tocar piano. Percorrer a relação entre um fitofármaco complexo, o corpo humano e a consciência que dele emana é uma tarefa árdua e com bastantes pontos cegos visto o emaranhado relacional e dinâmico de componentes. A ressonância entre o sistema endocanabinóide e seus ligantes fitoterápicos e endógenos é uma espécie de recado da evolução acerca da constante inter-relação das coisas, um fóssil vivo que tácita e até então, silenciosamente segue moldando a experiência.

Bibliografia

1. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo. SP: Martins Fontes; 2015.
2. Thomas Fuchs Ecology of the Brain: The phenomenology and biology of the embodied mind (International Perspectives In Philosophy & Psychiatry) (English Edition)
3. Meyer, H., Lee, F. & Gee, D. The Role of the Endocannabinoid System and Genetic Variation in Adolescent Brain Development. Neuropsychopharmacol. 43, 21–33 (2018). https://doi.org/10.1038/npp.2017.143
4. Peters KZ, Cheer JF, Tonini R. Modulating the Neuromodulators: Dopamine, Serotonin, and the Endocannabinoid System. Trends Neurosci. 2021 Jun;44(6):464-477. doi: 10.1016/j.tins.2021.02.001. Epub 2021 Mar 3. PMID: 33674134; PMCID: PMC8159866.
5. Socodato R. Dopamine D1 receptor signaling and endocannabinoid cooperate to fuel striatal plasticity: An Editorial Highlight for “Cyclic AMP-dependent protein kinase and D1 dopamine receptors regulate diacylglycerol lipase-α and synaptic 2-arachidonoyl glycerol signaling” on page 334. J Neurochem. 2020 May;153(3):297-299. doi: 10.1111/jnc.14977. Epub 2020 Feb 24. PMID: 32091130.
6. Yuste, R. From the neuron doctrine to neural networks. Nat Rev Neurosci 16, 487–497 (2015). https://doi.org/10.1038/nrn3962

* Dra. Mariana Muniz – Médica Psiquiatra formada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e com Residência Médica em Psiquiatria no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo (HSPE-IAMSPE-SP). Atualmente é mestranda em Neurociências do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde estuda sonhos, trauma e cannabis. No percurso de formação e prática como Psiquiatra dedica-se principalmente à Cannabis Medicinal, à Psiquiatria Humanista, à Antropologia Médica, à Teoria Queer, à Ciência Psicodélica, à interface entre a Arte, Psiquiatria e Linguagem e às questões relacionadas à Guerra às Drogas na América Latina e no Mundo. Formada em Desenho pela Quanta Academia de Artes.

Abrir bate-papo
Olá 👋
Podemos ajudá-lo?