A ideologia e as políticas antidrogas produzem uma série de abusos e absurdos que não poderiam ser aceitos de modo algum, em qualquer nível de vida civilizada. Mas, em função da “guerra às drogas”, eles são não apenas aceitos, como também difundidos e promovidos.
O que estou dizendo é que a ideologia antidrogas produz e justifica todo um universo de práticas violentas, abusivas, bárbaras, imorais e completamente inaceitáveis, mas que, sob a bandeira do combate às drogas e da proteção das pessoas, são, no entanto, bem aceitas na nossa sociedade e são até mesmo sustentadas e apoiadas, direta ou indiretamente, por ação ou omissão, pelas instituições médicas e sanitárias, no nosso país e mundo afora.
Realmente, sob a bandeira de combate às drogas aceitamos como normais a violência e o abuso policial, incluindo agressões, encarceramento de inocentes, assassinatos e execuções sumárias, chacinas e torturas. Isto na ponta criminal e penal. Enquanto, na ponta da assistência e recuperação de usuários de drogas com problemas psíquicos e sociais, também aceitamos o encarceramento, as torturas psicológicas e físicas, a intoxicação química e a religião assumindo o lugar da ciência e da prática médica.
E tudo isto é realmente endossado e disseminado, não apenas pelas instituições policiais, judiciárias e religiosas, mas também e sobretudo pela institucionalidade médica e sanitária. De fato, são as instituições médico científicas que, ao fim, sustentam, por sua autoridade técnica, toda a ideologia e as políticas de guerra às drogas.
As instituições médicas foram chamadas a cumprir o papel de justificar e disseminar estas práticas abusivas e inaceitáveis. E elas têm cumprido este papel nos últimos 80 anos, ou algo próximo disto.
A ideia básica que estas instituições disseminam é que certas drogas impõem risco tão grande à saúde física e, sobretudo, mental das pessoas que elas têm que ser proibidas, pois, se liberadas, causariam graves problemas de saúde pública e graves danos sociais.
Esta ideia básica, que, por seu caráter próprio, só pode estar enraizada na institucionalidade médico científica, é que sustenta toda a cadeia de abusos contra as pessoas envolvidas com drogas na nossa sociedade. A ideia que estas instituições apresentam à sociedade é que tudo isto se justifica, pois o perigo das drogas seria tão grande que mesmo estes abusos e absurdos todos seriam aceitáveis, ou ao menos toleráveis, como se fossem um mal menor.
Ocorre que este raciocínio é falso. E, há décadas, as instituições médico sanitárias estão no centro desta difusão de informações falsas e soluções absurdas e inaceitáveis. De fato, não há evidência que a liberação de drogas proibidas poderia causar mais danos que aqueles provocados pela guerra “às drogas”. Ao contrário.
Mas, aqui, como em tudo que se refere ao tema das drogas, há uma névoa difusa de terror e ignorância dominando a questão. Uma verdadeira farsa, ou um equívoco grosseiro, em relação ao risco real das drogas ilícitas se mantém há décadas nas instituições médico científicas.
A psiquiatria é ouvida, a pediatria também e todas falam de riscos extremos impostos pelas drogas. Sob o prisma clínico, ou individual, estas visões médicas podem até serem defensáveis, mas é do ponto de vista de saúde pública e do risco social propriamente ditos que ela deve ser realmente avaliada.
Pois, a avaliação dos riscos e danos das drogas não pode se circunscrever ao fato de que um indivíduo ou uma família podem ter as suas vidas desgraçadas por causa do abuso e da dependência de drogas. Mas sim, deve-se avaliar qual o peso real e potencial deste problema na população, no conjunto de pessoas expostas ao risco. E comparar com o risco e dano social causado pela guerra às drogas.
Portanto, aqui o que se deve ouvir é, sobretudo, a saúde pública, é a visão de saúde coletiva a que mais importa. Parece, no entanto, que há uma omissão ou irresponsabilidade da saúde pública em relação à questão das drogas.
Vamos tentar preencher um pouco desta lacuna com um breve exercício de análise de aspectos da epidemiologia das drogas e suas consequências, em comparação com a epidemiologia da guerra “às drogas” e suas consequências.
1.O problema das drogas
Vamos considerar, primeiro, algumas estimativas correntes na literatura norte-americana sobre dependência e riscos no uso de algumas drogas, que se pode consultar no CDC, por exemplo.
Estima-se que a síndrome de abstinência por cocaína ocorra em 30% dos usuários. Ou seja, em 70% dos usuários não ocorre síndrome de abstinência e, nestes, se reduz o risco, ou a incidência, de dependência química. Estima-se também que 10 a 15% dos usuários de maconha se tornam dependentes e que 30% dos usuários tenham distúrbios de uso relacionados a esta droga. Ou seja, quase 90% dos usuários de maconha não se tornariam dependentes e 70% não apresentariam quaisquer problemas de dependência ou abuso.
Se transpostas para o nosso país, estimativas como estas, referentes às duas principais drogas ilícitas consumidas no Brasil, indicariam um risco alto imposto por essas drogas à saúde pública? Um risco tão grande que justificaria as prisões, as violências, as mortes e as torturas que são impostas em nome da sua proibição e do tratamento dos drogados?
A resposta é não, certamente não. E vamos demonstrar isto com os dados nacionais logo adiante.Contudo, é difícil perceber esta realidade. Há, realmente, uma grande névoa de dados e informações manipuladas e mentirosas, sempre aumentando o risco, o potencial de dano, das drogas.
Hoje, por exemplo, se vamos pesquisar no Google sobre o risco de esquizofrenia entre usuários de maconha, vamos receber a informação destacada de que “a chance de desenvolver esquizofrenia seria quatro vezes maior entre usuários de maconha, conclui maior estudo já feito sobre a droga”.
Mas isto é falso, é mentiroso. É uma mescla de ignorância e má-fé. Simplesmente não é esta a conclusão do referido estudo dinamarquês: “Development Over Time of the Population Attributable Risk Fraction for Cannabis Use Disorder in Schizophrenia in Denmark”, publicado em 2021, pois, ele simplesmente não trata do risco relativo de esquizofrenia entre usuários de maconha, como é erroneamente afirmado no Google.
No entanto, a partir de sua postagem, pela instituição antidrogas SPDM, esta informação falsa rapidamente se disseminou na imprensa e entre as instituições e profissionais de saúde aqui no Brasil. E ninguém vai questionar este erro grosseiro, porque ele confirma os vieses ideológicos estabelecidos pela guerra “às drogas”.
Mas, vamos deixar essa névoa ideológica para trás e considerar simplesmente os dados que temos à nossa disposição aqui no Brasil.
Considerando-se as internações por abuso de drogas em todo o país em 2021, identificamos, no Datasus, o registro de 28 mil internações por abuso de álcool e 36 mil por abuso de outras drogas, grande parte destas também associadas ao álcool.
Seja como for, isto dá um total de 64 mil internações por abuso de drogas em 2021, no Brasil, o que representa 0,37% do total de internações no país naquele ano. É isto mesmo, menos de 0,5% do total de internações são provocadas pelo abuso de drogas.
É um percentual bem baixo de fato e deve-se destacar que, na maioria dos casos, a droga lícita, o álcool, está envolvido ou é o único agente causal. O estudo “Internações Decorrentes do Uso de Substâncias Psicoativas no Distrito Federal entre os Anos de 2000 a 2009” mostrou que o álcool era a causa direta de 65% destes casos e múltiplas drogas, onde o álcool frequentemente também está envolvido, representavam a causa de 25% do total de internações decorrentes do uso de drogas.
Com base nos dados nacionais e neste estudo do DF eu estimei que as internações por maconha acontecem na proporção de aproximadamente 1 em cada cem mil internações no Brasil.
Parece bastante óbvio que, no tocante às internações, não há um grave problema de saúde pública imposto pelas drogas ilícitas no Brasil. E, no caso da maconha, com estes dados, é absolutamente seguro afirmar que a sua liberação e ampla difusão também não implicariam em um problema significativo de saúde pública no nosso país, ao menos no tocante às internações hospitalares.
Ao considerarmos a mortalidade relacionada ao uso de drogas, é digno de nota, primeiramente, que a mortalidade relacionada ao uso de álcool e outras drogas bateu recorde no país durante a pandemia. Realmente, a pandemia impôs condições psico-sociais tão absurdas que o consumo e as mortes por drogas subiram.
Mas, vamos dar uma olhada no detalhe sobre estas mortes, quantas são e quais as drogas envolvidas. Analisando as mortes diretamente associadas à dependência química no Brasil, em 2020, verificamos que foram registradas 11 mil mortes, mas, destas, apenas 500 por drogas ilícitas. Destaca-se que foram 0 morte por dependência química ou abuso de maconha, em contraste com as 8 mil mortes por consumo de álcool e 2,5 mil por tabagismo.
É realmente impressionante como a quase totalidade destes óbitos são produzidos pelo consumo das drogas lícitas, legais.
E devemos destacar ainda que estas são as mortes que se vinculam diretamente ao uso das drogas, não estando incluídas aí as centenas de milhares de mortes por diversas doenças orgânicas associadas ao álcool e ao cigarro. Vários tipos de câncer e doenças cardiovasculares, por exemplo. Se elas fossem incluídas, o total de mortes devido a álcool e tabaco subiriam muito além dos 10,5 mil casos por ano, registrados em 2021, aqui no Brasil. Nos EUA, por exemplo, estima-se que “todo dia morrem 385 americanos como resultado do consumo excessivo de álcool”, ou seja, mais de 140 mil por ano (CDC – Deaths from Excessive Alcohol Use in the United States, 2021).
Creio estar claro, portanto, que se há um grande problema de saúde pública identificado pelas mortes relacionadas ao abuso e à dependência de drogas, a quase totalidade destas mortes é, realmente, causado pelas drogas permitidas, pelas drogas lícitas e não pelas drogas proibidas ou ilícitas.
2.O problema da guerra contra “as drogas”
Vamos focalizar nossa atenção, imediatamente, sobre a questão das mortes violentas provocadas pela política de combate “às drogas”, pela guerra “às drogas”, considerando os dados nacionais mais atualizados.
De acordo com o Datasus, foram 47 mil mortes por agressão em 2020, sendo que 30 mil destas foram causadas por arma de fogo. Neste mesmo ano ainda foram registradas 14 mil mortes violentas não esclarecidas se foram assassinatos ou não.
Por estes dados não é possível saber qual a proporção destas mortes está associada à proibição das drogas, ou seja, não é possível saber quantas destas mortes foram provocadas diretamente por traficantes ou por agentes policiais no combate “às drogas”.
Não há, de fato, estatísticas seguras neste aspecto, mas, segundo afirmou, em entrevista de 2017, a então secretária de segurança do RN, Sheila Freitas: “78% destas mortes têm relação com o tráfico de drogas”. E, como ela acrescentou, “o perfil da vítima de assassinato no RN é homem jovem, com idade entre 19 e 24 anos, solteiro, pobre, vítima de arma de fogo em 90% dos casos. Estamos preocupados com o crescimento das mortes de crianças e adolescentes entre 10 e 17 anos”.
Aplicando esta estatística ao cenário nacional, ela nos indica que aproximadamente 37 a 48 mil mortes seriam causadas, anualmente em nosso país, pela ideologia e pelas políticas públicas de guerra “às drogas”. E pior, algo que merece o maior destaque, a grande maioria destas mortes são de jovens ou adolescentes negros e pobres. Mortos exclusivamente em nome desta ideologia.
Não existem dados que nos permitam sequer estimar diretamente qual seria o total de internações, cirurgias, sequelas e incapacidades resultantes da violência provocada pela guerra “às drogas”, mas podemos, com segurança, dado o número de mortes, estimar em várias dezenas ou algumas centenas de milhares de casos anuais.
Portanto, hoje, no Brasil, no que toca às mortes, o problema de saúde pública causado pelo combate “às drogas” e pela política de criminalização “das drogas” é muitas e muitas vezes maior, mais grave e mais destrutivo do que o problema causado pelas próprias drogas ilícitas.
Além das mortes e das internações, cirurgias, sequelas e incapacidades, a criminalização das drogas é ainda mais pródiga em produzir prisões.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, em 2005, antes da atual legislação antidrogas, 14% dos presos foram condenados por crimes relacionados ao tráfico,. Já em 2019, o delito representava 27,4% dos presos. E entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total.
Ora, o total de presos no Brasil foi de 900 mil em 2021 e está crescendo, de acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ); ou seja, hoje, algo como 250 mil pessoas estão presas, no Brasil, por tráfico de drogas, exclusivamente. E mais da metade do total de mulheres presas é por esta causa.
Não é razoável, nem mesmo deveria ser possível, que a saúde pública desconsiderasse o dano causado por estas centenas de milhares de prisões, principalmente de jovens, homens e mulheres, por tráfico de drogas. São vidas temporariamente interrompidas, com toda uma série de consequências negativas que daí advêm para eles e para os seus familiares e a sociedade em geral.
Ainda precisamos considerar que parcela destes problemas extremamente graves são consequência da devida ação legal do Estado, mas, o que piora muito as coisas, grande parte é causada por abuso e violência ilegal e imoral seja das polícias, seja da justiça e / ou do sistema penal.
Hoje, no Brasil, 32% a 50% dos presos são provisórios, sem julgamento, e 35% dos presos são agredidos na prisão, de acordo com a SSPSP. E, mais, como informa a Agência Câmara de Notícias, a tortura é reconhecida pela ONU como um problema estrutural do sistema carcerário no Brasil. O que é uma vergonha e uma abominação sobre toda a nação brasileira.
Mais uma vez, como é possível que a área de saúde, em especial a saúde pública, continue de olhos fechados para esta realidade, endossando a necropolítica anti “drogas”?
Temos que incluir aqui ainda, apenas como referência, porque os dados são muito precários nesta área, todas as internações de longa permanência, todas as reclusões forçadas, todas as torturas psicológicas e físicas, todas as intoxicações medicamentosas, todos os adoecimentos e incapacitações impostas a milhares de jovens sob a alegação de reabilitá-los e protegê-los do malefício das drogas.
Está mais do que evidente que os danos de saúde pública e sociais causados pela ideologia de criminalização das drogas são imensamente maiores do que os problemas de saúde pública e sociais, causados ou potenciais, das drogas ilícitas.
Vamos então perguntar, pela última vez, como é possível que a ciência e a institucionalidade médico sanitária ainda se mostrem alheias a esta realidade e continuem apoiando a criminalização das drogas ou permaneçam omissas diante desta tragédia?
Isto é pior do que uma simples irresponsabilidade, é um verdadeiro crime.
* Paulo Fleury Teixeira é médico, filósofo e pioneiro no tratamento de autistas com canabinoides. Tem especialidade em medicina preventiva e social e trabalha na clínica e pesquisa com canabinoides e outros enteógenos de origem natural.