A recente aprovação pela Anvisa da regulamentação para uso de produtos à base de Cannabis em animais é um marco significativo na trajetória da Cannabis medicinal no Brasil. Essa medida histórica não só reflete um avanço científico e regulatório, como também simboliza o potencial de tratamento e alívio para diversas condições clínicas, agora incluindo o universo veterinário. Os veterinários brasileiros, em conformidade com rígidos controles, poderão prescrever esses produtos de maneira segura e responsável, abrindo portas para novas terapias que beneficiam diretamente a saúde animal e, por consequência, o bem-estar de seus tutores.
O Contexto da Decisão da Anvisa: Expansão da Cannabis Medicinal
Em 2019, a Anvisa introduziu a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 327, que regulariza a venda e prescrição de produtos à base de Cannabis para uso humano. Desde então, a regulamentação avançou em várias etapas, sempre com o cuidado de assegurar que o uso seja terapêutico e controlado. A decisão atual, que expande a regulamentação para incluir o setor veterinário, representa um passo lógico, tendo em vista que outros medicamentos controlados já são amplamente usados em tratamentos para animais. Em resposta a pedidos do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), a Anvisa revisou e atualizou a Portaria 344/1998, que regula produtos controlados no Brasil, de modo a contemplar também os produtos de Cannabis para uso veterinário.
Essa decisão é importante por vários motivos. Primeiro, atende a uma demanda crescente de tutores de animais, veterinários e profissionais da saúde animal que buscam opções de tratamento mais naturais e menos invasivas para aliviar dores crônicas, condições neurológicas, ansiedade, entre outras condições que afetam o bem-estar dos animais. Além disso, essa expansão da regulamentação reforça a legitimidade da Cannabis medicinal no Brasil, demonstrando que, com os devidos controles, o uso da planta pode ser seguro, eficaz e benéfico.
Benefícios e Potenciais da Cannabis na Medicina Veterinária
O uso de produtos à base de Cannabis para tratamento veterinário não é um fenômeno isolado. Em outros países, principalmente nos Estados Unidos e em algumas nações europeias, os veterinários já vêm aplicando produtos com canabinoides no tratamento de animais com problemas variados, como artrite, convulsões, inflamações e até mesmo ansiedade. O principal composto da Cannabis, o CBD (canabidiol), tem demonstrado potencial terapêutico e é bem aceito por animais devido a suas propriedades anti-inflamatórias, analgésicas e ansiolíticas. Estudos preliminares mostram que o CBD pode melhorar a qualidade de vida de animais idosos, especialmente aqueles que sofrem com dor crônica ou problemas de mobilidade.
Por outro lado, o THC (tetrahidrocanabinol), o principal composto psicoativo da Cannabis, apresenta riscos se administrado em doses elevadas aos animais. Por isso, a regulamentação brasileira também deverá observar o equilíbrio de compostos nos produtos, assegurando que sejam seguros e adequados às necessidades de cada espécie. A restrição do uso de produtos de Cannabis para fins exclusivamente terapêuticos, com prescrição e retenção de receita, segue alinhada a esse princípio de precaução, garantindo a segurança dos animais e a confiança dos tutores.
A medida ainda restringe a manipulação de produtos à base de Cannabis, o que assegura que apenas formulações específicas e aprovadas, com controle rigoroso de dosagem e composição, sejam utilizadas no tratamento veterinário. Esse controle é crucial, especialmente considerando que há uma lacuna de pesquisas robustas sobre os efeitos da Cannabis em várias espécies animais. É vital que a administração desses produtos seja sempre realizada por profissionais capacitados e de forma controlada, evitando riscos de efeitos adversos.
Avanço Regulatório e Desafios da Implementação
Apesar dos avanços, a regulamentação ainda enfrenta desafios e algumas limitações. Em primeiro lugar, a medida ainda precisa ser oficialmente publicada no Diário Oficial da União para entrar em vigor, o que exige articulação entre as entidades reguladoras. Além disso, o custo dos produtos à base de Cannabis no Brasil continua alto, em parte devido à necessidade de importação e à ausência de produção local em escala. Essa realidade pode limitar o acesso aos produtos de Cannabis para um público mais amplo, incluindo tutores de animais que não conseguem arcar com os custos elevados.
Outro desafio é a falta de conhecimento sobre o uso veterinário de produtos à base de Cannabis entre os próprios veterinários. Embora muitos já utilizem substâncias controladas em seus tratamentos, a introdução da Cannabis requer capacitação específica. Instituições como o CFMV têm papel fundamental em oferecer cursos, diretrizes e materiais de referência para apoiar os profissionais no uso correto e seguro desses produtos.
Para além da formação técnica, é preciso fomentar uma mudança cultural e combater o estigma que ainda envolve o uso medicinal da Cannabis. A aprovação da Anvisa é um passo relevante, mas que precisa ser sustentado por campanhas educativas que esclareçam a sociedade sobre os benefícios comprovados da Cannabis medicinal, tanto para humanos quanto para animais. Só assim será possível quebrar preconceitos e consolidar o uso da Cannabis como uma ferramenta legítima na medicina.
O Papel da Sociedade e dos Profissionais no Futuro da Cannabis Medicinal
A regulamentação da Cannabis medicinal, seja para humanos ou animais, é um movimento que não só beneficia pacientes e profissionais de saúde, mas também alavanca a pesquisa científica e a inovação no Brasil. A expansão para o campo veterinário aumenta a legitimidade e abre espaço para novas descobertas. A sociedade, como um todo, deve apoiar essa evolução, entendendo que o uso responsável e regulamentado de Cannabis pode trazer alívio e melhor qualidade de vida a seres que, muitas vezes, não têm voz para expressar sua dor.
Profissionais da saúde e defensores da causa têm o papel de promover o acesso à informação correta, combatendo mitos e informando sobre o uso adequado da Cannabis. Da mesma forma, os tutores de animais que experimentam esses tratamentos devem relatar suas experiências, permitindo que outros compreendam os benefícios e as limitações dessa terapia. Esse compartilhamento de experiências é essencial para fortalecer a causa e mostrar que a Cannabis, quando usada de forma segura e regulamentada, é uma aliada na medicina.
Conclusão: Um Passo à Frente na Medicina Veterinária e no Ativismo pela Cannabis Medicinal
A decisão da Anvisa é um marco para o Brasil, não apenas por incluir a Cannabis medicinal na medicina veterinária, mas também por demonstrar que é possível avançar em um tema sensível e necessário com responsabilidade e rigor. A regulamentação desses produtos representa uma vitória para os ativistas da Cannabis medicinal, para os profissionais de saúde e para aqueles que acreditam no potencial terapêutico da planta. É um sinal de que a ciência e o bom senso estão triunfando sobre o preconceito, e que o Brasil está se abrindo para o que há de mais promissor na medicina global.
Essa medida deve ser encarada como um ponto de partida. O caminho para uma regulamentação ainda mais abrangente e acessível é longo, mas passos como esse mostram que é possível alcançar um futuro onde a Cannabis medicinal esteja disponível para todos que precisam, independentemente da espécie. É fundamental que continuemos defendendo o direito ao acesso seguro e informado à Cannabis, promovendo uma medicina mais compassiva, eficaz e conectada com as reais necessidades dos pacientes — sejam eles humanos ou animais.
*Marina Gentil é advogada OAB/SC, pós graduanda em Cannabis Medicinal, diretora jurídica da Green Couple Assessoria e CEO da Clínica Sativa.