Quem nunca se deparou com um paciente que relata “doutor(a), eu sempre fui ansioso”? Acho que a maioria de nós, médicos ou estudantes de medicina, já sentamos em frente a alguém com esse discurso. Importante pontuar algo aqui: A ANSIEDADE É UMA RESPOSTA FISIOLÓGICA dos seres humanos, então todos devemos ter a sensação de ansiedade, mas essa sensação deve ocorrer nos momentos corretos e na intensidade correta. Por exemplo, se estivermos sendo assaltados a mão armada, é normal que tenhamos um aumento de frequência cardíaca, de pressão arterial, tensão muscular, aumento de frequência respiratória, sentimento de medo. Mas e quando vamos a um evento social simples, como um aniversário? Ou quando temos uma viagem próxima de avião? Nesses momentos, fisiologicamente não deveríamos sentir tudo isso, uma sensação de que o pior vai acontecer em breve, ou se sentirmos, seria algo compatível com a situação apresentada. Quando estímulos não ameaçadores (ou às vezes até sem estímulo nenhum) geram respostas fisiológicas de medo/apreensão/luta ou fuga de INTENSIDADE ou FREQUÊNCIA acima da esperada, de forma a trazer PREJUÍZO ao indivíduo, temos os transtornos ansiosos.
Quando falamos em transtornos ansiosos, estamos falando da mais prevalente classe de transtornos psiquiátricos na atualidade, sendo o Brasil o país com maior número de pessoas ansiosas NO MUNDO!
Em contrapartida ao crescente número de diagnósticos, temos bem sedimentado hoje que os tratamentos medicamentosos mais amplamente difundidos (inibidores seletivos de recaptação de serotonina, inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina, benzodiazepínicos, antidepressivos tricíclicos, entre outros) possuem uma eficácia limitada, reduzindo de forma relevante os sintomas em apenas 40-60% dos casos, sendo essa redução apenas PARCIAL na maior parte das vezes. Além disso, essas medicações podem ter um perfil desfavorável de efeitos colaterais (a maioria deles pode gerar alteração de motricidade, tontura, alteração das funções sexuais, alteração de apetite, alteração de sono, efeitos gastrointestinais…) ou de risco-benefício, como no caso dos Benzodiazepínicos, que são eficazes para o controle da ansiedade para muitos pacientes, mas seus efeitos adversos a curto, médio e longo prazo, os colocam como uma medicação a ser evitada se for possível (inclusive pela tolerância e risco de adicção).
Tendo em vista isso, busca-se de forma contínua maneiras de se melhorar as terapêuticas e potencializar os efeitos benéficos das medicações disponíveis…e é aqui que entra o uso de Cannabis! Mas antes de falarmos diretamente como a Cannabis pode ajudar, temos que relembrar como a ansiedade ocorre em nosso organismo:
- O córtex pré-frontal sinaliza para o sistema límbico, principalmente através do nosso principal neurotransmissor excitatório – o Glutamato -, que um estímulo é ameaçador (nos transtornos ansiosos isso ocorre de maneira desregulada, havendo um aumento da quantidade de glutamato);
- O sistema límbico (amígdala, hipotálamo, hipófise, hipocampo) classifica esse estímulo a partir da sinalização recebida e estimula a produção de CRH pelo hipotálamo, que estimula a produção de ACTH pela hipófise, que sinaliza as adrenais para que ocorra a produção de Norepinefrina, Epinefrina e Cortisol.
- Pelo excesso de glutamato, temos naturalmente uma menor produção de GABA (este é produzido a partir do Glutamato), nosso principal neurotransmissor inibitório, responsável por exemplo pelo relaxamento;
- A Norepinefrina em níveis elevados vai ser responsável por gerar os sintomas característicos dos quadros ansiosos:
- Sintomas Cognitivos: pensamentos de apreensão (prevê desfecho desfavorável), sensação de tensão, irritabilidade, nervosismo, insegurança;
- Sintomas Somáticos
- (hiperatividade autonômica): boca seca, hiperpneia, taquicardia, falta de ar, sudorese, náusea, diarreia, dor abdominal;
- (hiperventilação): tontura, pressão no peito, parestesias;
- (tensão muscular): tremores, dores;
- Sintomas Comportamentais: Insônia, inquietação, comportamentos fóbicos, rituais compulsivos;
- Sintomas Emocionais: Vivências de desconforto e desprazer;
Agora que já entendemos/relembramos como a ansiedade ocorre no que diz respeito à fisiologia, vamos explicar na Parte 2 como o Sistema Endocanabinoide pode regular esses quadros.
– AGENDE UMA CONSULTA COM A DOUTOR BRUNO PALADINI
Depois da parte 1, que revisou as bases neurobiológicas dos transtornos ansiosos, vamos entender como nosso próprio organismo consegue regular (em uma situação não-patológica) essas atividades a partir de um sistema interno, chamado Sistema Endocanabinóide.
De forma simplista, esse Sistema é composto por 2 receptores (CB1 e CB2, ambos ligados a proteína G inibitória. O primeiro mais presente no Sistema Nervoso Central, com expressão relevante no sistema límbico, e o segundo principalmente no sistema imune, mas temos uma distribuição bastante ampla em todo o organismo); por 2 endocanabinoides (Anandamida e 2-AG, ambos produzidos sob demanda a partir da membrana plasmática, principalmente de neurônios pré-sinápticos); e por 2 enzimas que são responsáveis pela degradação desses endocanabinoides (FAAH e MAGL).
Quando nossas adrenais produzem os glucocorticoides (norepinefirna, epinefrina e cortisol) temos um mecanismo que faz com que ocorra um aumento nos níveis de 2-AG, de forma a ativar os Receptores CB1, sendo essa ativação responsável, em indivíduos em homeostase, pela regulação da excitação do sistema límbico e da atividade das adrenais, conforme a imagem abaixo.
Além disso, a própria liberação de glutamato na fenda sináptica pelo neurônio pré-sináptico faz com que ocorra uma produção de 2-AG e Anandamida a partir da membrana do neurônio pós-sináptico, promovendo um efeito de feedback negativo, que culmina com uma menor liberação de Glutamato na fenda sináptica, modulando a excitação do Sistema Nervoso Central.
Acho que já conseguimos entender qual a relação do nosso sistema endocanabinoide com o controle das reações de ansiedade, mas então por que precisamos utilizar medicamentos à base de Cannabis para regular esse sistema?
Hoje já sabemos que o estresse crônico promove um estado hipocanabinérgico no nosso organismo (ou seja, temos menos endocanabinoides e uma menor expressão de receptores canabinoides do que deveríamos), havendo um aumento de atividade das enzimas responsáveis pela degradação dos endocanabinoides (FAAH e MAGL). Além disso, estados inflamatórios crônicos reduzem a ação da Anandamida, e o etilismo (que muitas vezes está associado a quadros ansiosos) reduz os níveis de 2-AG.
Dessa forma, temos uma desregulação do nosso mecanismo de modulação dos sintomas ansiosos, e é aqui que entra a ação dos fitocanabinoides, entre eles o THC e o CBD, mas esse é um assunto para a Parte 3.
*Dr. Bruno Paladini é Médico de Família e Comunidade e também atua como preceptor do Programa de Residência de Medicina de Família e Comunidade do internato da UNIFIPA (FAMECA) na cidade de Catanduva, São Paulo. Devido a sua área de atuação generalista e focada no bem estar dos pacientes, o Doutor Bruno possui vasta experiência no manejo de produtos de Cannabis nas mais diversas situações e fases do cuidado com o paciente, atuando como prescritor de Cannabis desde 2019.
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