No último dia 14 de outubro de 2022, a Comunidade Médica Canábica foi surpreendida com a publicação da Resolução n°2.324/2022 do Conselho Federal de Medicina, a qual não se deteve só a restrição da prescrição de canabidiol somente para o tratamento de epilepsias refratárias da criança e do adolescente na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa, mas também vedou os médicos que ministrarem palestras e cursos sobre uso do canabidiol e/ou produtos derivados de Cannabis fora do ambiente científico, além de proibir a divulgação publicitária sobre o tema.
Tal situação causou um reflexo negativo imediato dos médicos e dos milhares de pacientes,e seus familiares, que fazem uso da Cannabis medicinal como tratamento e não tiveram sua patologia contemplada nesta resolução.
Diante da avalanche de manifestações contrárias à normativa do CFM publicadas em inúmeras redes sociais e nas mídias como um todo, ocorreram, na sequência,diversas reuniões: de associações de cannabis medicinal, de advogados de médicos, advogados militantes da causa do direito à saúde e do direito canábico, todos unidos para estudar a causa e traçar a melhor estratégia jurídica para provocar o Poder Judiciário e trazer de volta a segurança jurídica para os médicos prescritores e o sossego para os pacientes.
Após esse grande debate técnico, com o objetivo de trazer tranquilidade para a comunidade médica canábica e para os pacientes e familiares nesse período de instabilidade, algumas considerações jurídicas preliminares foram ressaltadas, são elas:
Primeiro, a Resolução n°2.324/2022 é inconstitucional diante do afrontamento de alguns dispositivos do art. 5°, CF/1988, dentre eles:
-Inciso XIII, menciona que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, já no inciso XIV, onde diz que é assegurado a todos o acesso à informação. Observa-se que essa Resolução do CFM viola o livre exercício da profissão médica e a liberdade de expressão, quando limita quais locais os médicos poderão ministrar cursos e palestras sobre o tema, respectivamente.
Segundo, do ponto de vista do Código de Ética Médica, a Resolução fere a autonomia médica, quando limita a atividade do médico na escolha do melhor tratamento para seu paciente. O próprio Código de Ética Médica estabelece como Princípio Fundamental, Capítulo I, os seguintes incisos:VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente; e VIII– O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.
Terceiro, o papel do Conselho Federal de Medicina e sua competência foram extrapoladas ao editar essa Resolução, tendo em vista que o CFM não tem competência para aprovar ou não medicamentos, muito menos sua indicação clínica, papel esse que cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária -ANVISA, a qual já se manifestou afirmando que manterá atual regulamentação para fins de autorização dos produtos de cannabis para fins medicinais, independente da Resolução do CFM. Diante disso, observa-se a intervenção direta do CFM nas prescrições médicas, como se tivesse esse poder como conselho de classe.
As atribuições do CFM, definidas pela Lei n°3.268/57, dentre outras, são: supervisionar a ética médica, julgar e disciplinar a classe médica, visando o perfeito ato ético e o bom conceito da profissão.
Diante dessa análise,procura-se neste momento resguardar o tratamento com cannabis de milhares de pacientes, evitar que sejam interrompidos abruptamente, e, ainda, trazer segurança jurídica para que os médicos possam prescrever sem correr o risco de serem punidos pelo Conselho Regional de seu estado.
Vale lembrar ainda que a importação e a comercialização dos produtos à base de Cannabis sp permanecem autorizadas pela ANVISA, logo a venda no Brasil não foi proibida, pelo contrário, cada vez mais vemos produtos recebendo autorizações sanitárias para serem comercializados no Brasil, inclusive em farmácias.
Nesse contexto, por cautela, sugere-se que os médicos, nesse momento instável, evitem publicar em suas redes sociais sobre o tratamento de cannabis medicinal e suas aplicações clínicas.
Ainda, recomenda-se ao médico que na prática clínica com canabinóides aplique o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), se ainda não o faz, com as seguintes finalidades: I- de se ter o registro do esclarecimento, por parte do médico, sobre o procedimento, os riscos de possíveis complicações, suas consequências, os benefícios, malefícios e as alternativas de tratamento ou experimentação terapêutica a que o paciente será submetido; e II- a autorização do paciente e/ou do representante legal para a realização do procedimento.
Além do TCLE, ressalta-se também a importância de um laudo bem elaborado, contendo o máximo de detalhes sobre o quadro clínico do paciente, juntando exames, se possível, evoluções clínicas, intervenções já realizadas, etc. e citar artigos científicos que sustentem ainda mais a escolha pelo tratamento com cannabis medicinal.
Por fim, em caso de dúvidas sobre como agir nessa situação, orienta-se que os médicos consultem o jurídico de sua confiança para mais esclarecimentos.
Assim, esses foram alguns pontos discutidos com relação aos desdobramentos após a publicação da Resolução do CFM. O desenrolar dessa situação ainda é incerto, como ficará a prática médica e quais serão as estratégias para provocar o Poder Judiciário ainda não se sabe. Contudo, o momento pede calma, deve-se confiar na união das forças de cada paciente e seus familiares, somados aos embasamentos técnicos corretos para se vencer mais essa batalha em busca do tão sonhado momento em que todos os órgãos, instituições e políticos já terão compreendido a importância da legalização plena do uso da Cannabis medicinal no Brasil.
Pryscila Droppa – Advogada, especialista em direito à saúde e direito regulatório, CEO do escritório de advocacia – Pryscila Droppa, Advocacia & Saúde, com atuação em todo Brasil; .Possui atuação há mais de 3 anos com o direito e cannabis, com atuação tanto com pacientes quanto com empresas do setor canábico. Farmacêutica e bioquímica, há mais de 15 anos, com especialização em Saúde Pública; Autodidata do Sistema Endocanabinóide desde que sua filha, do espectro autista, passou a fazer uso do óleo da cannabis medicinal. Fundadora do instagram @cannabis_in_law