Os avanços dos tratamentos e dos estudos que envolvem a cannabis medicinal estão ecoando no Judiciário brasileiro. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pautaram julgamentos históricos envolvendo o porte de drogas para consumo pessoal.
Em agosto, o voto do Ministro Alexandre de Moraes ganhou notoriedade por surpreender especialistas, ao dizer que não deve ser considerada traficante a pessoa que tenha consigo 60 gramas de cannabis ou 6 plantas fêmeas. Com um placar de 4 votos a zero a favor da despenalização do porte para uso pessoal, três ministros já se declararam favoráveis à descriminalização do porte, ao menos para a cannabis, entendendo que a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo a substância entorpecente “maconha” não tipifica o crime, conforme já previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006.
No mesmo sentido, em setembro, a Terceira Seção Criminal do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento sobre o tema, para garantir que pacientes não sofram sanção criminal pelo cultivo doméstico de cannabis sativa destinado à extração do óleo com finalidade medicinal. Entre outros fundamentos, o colegiado considerou que a falta de regulamentação sobre plantio não pode prejudicar pacientes.
Mas o que isso tem a ver com a cannabis medicinal? Tudo.
Os pacientes que precisam de produtos derivados da cannabis para tratamentos de saúde têm hoje pouquíssimas opções regularizadas para acesso: i) adquirir o produto de associações de pacientes que realizam o plantio e a extração do canabidiol – com ou sem autorização judicial – ii) comprar medicamentos que já são vendidos em farmácias sem manipulação ou drogarias – com limitadas opções de dosagem, princípios ativos e vias de administração – iii) importar diretamente em nome de pessoa física, com autorização excepcional da Anvisa – com entraves burocráticos e atraso nas entregas ou iv) mandar manipular em uma das poucas farmácias de manipulação que buscaram liberação judicial para manipular cannabis mediante prescrição médica, mas que só tem acesso a um IFA insumo farmacêutico ativo, o canabidiol a 3%. No Brasil é importado por uma distribuidora de Santa Catarina, a única com a liberação judicial.
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O paciente que necessita da cannabis medicinal se depara, frequentemente, com obstáculos significativos: preços proibitivos, não achar a dosagem certa, a substância exata, não ter acesso a formas farmacêuticas alternativas à oral e nasal (por exemplo, cápsulas, pós, filmes orodispersiveis, supositórios), além da demora e entraves burocráticos para importação direta de produtos.
No caso das associações de plantio, o principal desafio é controle de qualidade e padronização, para garantir que cada frasco entregue a quantidade certa de substâncias, dentro de limites aceitáveis de impurezas.
Neste cenário, que escancara privilégios, aprofunda desigualdades e sublinha preconceitos, os mais pobres e menos instruídos ficam à deriva, sem acesso ao tratamento. Assim algumas pessoas fazem o chamado auto cultivo: plantio e extração caseira da cannabis, com ou sem habeas corpus judicial. É aqui que as plantas fêmeas, incluídas no voto de Alexandre de Moraes, se tornam relevantes.
Os cultivadores fazem o que podem para aprimorar suas técnicas de plantio e extração, com maior ou menor grau de sofisticação. Alguns se arriscam em desobediência civil ao plantar e extrair, não só para si mesmos, mas para fornecer a outros pacientes que não conseguem acesso a outros tratamentos. Há casos em que cultivadores são presos como traficantes – crime hediondo e inafiançável -, com penas que podem chegar a 15 anos de reclusão.
No setor de farmácias de manipulação, fortemente regulamentadas e fiscalizadas, causa espanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ter proibido, em 2019, não só a manipulação, como também a dispensação (simples comércio já autorizado às drogarias) da cannabis medicinal.
Neste cenário, de um lado pacientes e associações buscam garantir o acesso de pacientes com plantio e extração artesanal, enquanto as empresas que intermediam importação direta para pacientes abastecem o mercado com produtos sem registro na Anvisa. E, de outro, as indústrias farmacêuticas e importadores oferecem poucas e caríssimas opções legalizadas nas drogarias.
Por que então as farmácias de manipulação e os farmacêuticos magistrais são os únicos que continuam “algemados” pela Anvisa?
Mesmo plenamente licenciadas para operar com outros entorpecentes e psicotrópicos (muito mais perigosos que a cannabis!), as farmácias que manipulam estão impedidas de cumprir sua vocação e propósito: entregar produtos individualizados, padronizados, com qualidade controlada, interagir com os médicos sobre as prescrições e interações medicamentosas, e de acompanhar os pacientes.
Portanto, é evidente que o cenário atual da cannabis precisa ser contemplado a partir uma abordagem amplificada. Sem uma discussão ampla e uma regulamentação definitiva e justa para a cannabis medicinal, e enquanto não houver pleno acesso aos tratamentos, o auto cultivo e suas implicações criminais continuarão permeando o debate.
Sem farmacêutico não se faz medicamento de qualidade. As farmácias de manipulação, que possuem estrutura técnica e científica, continuam de mãos atadas sem poder atuar neste setor. Precisamos, urgentemente, avançar.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.
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