Que a Cannabis possui um enorme potencial terapêutico, isso não é nenhuma novidade. Na verdade, a humanidade já sabe disso há pelo menos uns 4.700 anos, quando registros apontam o uso da planta para fins medicinais pelo “pai da medicina chinesa”, Shen-Nung1. Contudo, um melhor entendimento de como esta planta exerce seus efeitos sobre o corpo de forma a explicar todo este potencial, isso sim é algo bastante recente.
Tudo começou com uma sequência de achados que culminou na descoberta do Sistema Endocanabinoide (SEC), no fim do século XX (entre as décadas de 1980 e 1990)2. Até então não se fazia ideia de como os principais compostos da planta, sobretudo os fitocanabinóides ∆9-tetrahidrocanabinol (∆9-THC) e canabidiol (CBD), atuavam no organismo humano. Antes da descoberta do SEC, acreditava-se as ações do ∆9-THC estariam, por exemplo, relacionadas apenas às alterações de fluidez de membranas biológicas3. Ledo engano, pois um “universo” muito mais complexo se escondia, até aquele momento, dos “olhos” da ciência.
Este “universo” começou a ser desvendado em 1984, quando a pesquisadora Allyn Howlettdemonstrou que os canabinóides inibem a produção de AMPc (adenosina monofasfato cíclica) em cultura de células, sugerindo um sistema de transdução mediado pela ativação de receptores4. Este achado foi seguido pelo ensaio de ligação com radioativos (binding) para receptores canabinóides5, localização destes receptores6 e, finalmente, clonagem e sequenciamento do primeiro receptor canabinóide, denominado CB17. E não só descobriram que tais receptores existiam, como também perceberam que eles se apresentavam em abundância, pois estavam amplamente distribuídos em praticamente todo o sistema nervoso. Mas a sequência de grandes descobertas não parou por aí, visto que para cada receptor encontrado no nosso corpo deve também haver ao menos um ligante endógeno. Afinal, nenhuma “fechadura” é feita sem a sua respectiva “chave” (ou chaves), não é mesmo? Então o foco da ciência passou a ser na descoberta desses ligantes, os quais viriam a ser chamados de endocanabinoides (eCBs).
A partir de então, os/as cientistas passaram a saber o que procuravam, ou seja, ligantes endógenos para os receptores CB1 que, provavelmente, seriammuito semelhantesaos seus ligantes exógenos (ex.: ∆9-THC), pois essa ligação é sempre muito específica (a chave da fechadura da minha casa não abre a fechadura da casa do vizinho). E aí vem um fato que vale não apenas para essa procura (de um possível eCB), mas para todas as “procuras” da vida, que é: quando sabemos o que procuramos, encontramos mais rápido! Por isso não demorou muito para que este ligante endógeno fosse descoberto e já no início dos anos de 1990 um grupo de pesquisadores liderados por Raphael Mechoulam identificou a etanolamina do ácido araquidônico, um eCB que passou a ser chamado de anandamida, palavra derivada do sânscrito que significa “êxtase/felicidade”8. Na sequência, foram descobertos ainda outros ligantes endógenos (ex.: 2-araquidonilglicerol/2-AG), bem como um segundo receptor canabinóide (CB2), encontrado principalmente na periferia do corpo9. Todos estes ligantes e seus receptores, junto de enzimas de metabolização (ex.: FAAH e MAGL) e proteínas transportadoras, constituem um sistema de neurotransmissão complexo e cheio de peculiaridades,o tal doSEC mencionado no início deste texto.
Feitas estas descobertas, a próxima grande pergunta a ser respondida era: para que serve este sistema? Desde então a resposta a esta questão ganha cada vez mais “capítulos” (ou artigos) e a cada nova descoberta fica mais claro de onde vem o enorme potencial terapêutico que a Cannabis apresenta. Hoje se sabe, por exemplo, que o SECé o principal neuromodulador do sistema nervoso, regulando a liberação pré-sináptica de neurotransmissores excitatórios (ex.: glutamato) e inibitórios (ex.: GABA)10,11. Essas funções neuromodulatórias são formas de plasticidade sináptica que desempenham um papel fundamental na regulação de várias respostas fisiológicas, incluindo, por exemplo, controle de epilepsias, respostas emocionais, memória, regulação de repostas imunes, controle da dor e muitas outras funções relacionadas à homeostase do organismo12. Entender o papel deste sistema no nosso organismo é entender o motivo pelo qual os fitocanabinóides são promissores para o tratamento de tantas patologias, pois eles mesmos ajudam a regular este sistema que, por consequência, “regula” o funcionamento adequado do nosso corpo. Portanto, se você ainda se surpreende com o potencial terapêutico da Cannabis, lembre-se, a resposta está nas funções do SEC.
Referênciasindicadas:
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