O sistema de justiça criminal no Brasil é marcado por contradições e ineficiências que perpetuam desigualdades sociais. A política de drogas, especialmente no que diz respeito ao crime de tráfico, é um dos exemplos mais gritantes dessa realidade. Apesar de ser apresentada como uma ferramenta para combater o crime organizado e proteger a sociedade, a atual legislação sobre drogas acaba por criminalizar principalmente os mais pobres, enquanto falha em atacar as estruturas maiores do narcotráfico.
A Lei de Drogas e a subjetividade perigosa
A Lei 11.343/2006, que regula o tráfico de drogas no Brasil, permite que juízes decidam, com base em critérios subjetivos, se um indivíduo encontrado com substâncias ilícitas é usuário ou traficante. Isso abre brechas para interpretações enviesadas e decisões arbitrárias, muitas vezes influenciadas pelo perfil socioeconômico do réu. Jovens negros e periféricos acabam sendo desproporcionalmente enquadrados como traficantes, mesmo quando encontrados com pequenas quantidades de drogas.
Estudos mostram que mais de 60% das prisões por tráfico de drogas no Brasil envolvem réus primários, frequentemente detidos com quantidades ínfimas de entorpecentes. Essa realidade escancara o uso da legislação como ferramenta de controle social, ao invés de combater efetivamente o crime organizado.
O encarceramento em massa e seus efeitos
O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, e os crimes relacionados a drogas são uma das principais razões para isso. O encarceramento em massa, longe de resolver o problema, apenas agrava a crise penitenciária e onera ainda mais os cofres públicos. Dados do CNJ mostram que 35% das pessoas encarceradas no país estão presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Além disso, o sistema penitenciário, dominado por facções criminosas, transforma pequenos traficantes em mão de obra para organizações como o PCC e o Comando Vermelho. Em vez de desarticular o crime organizado, a política de encarceramento alimenta seu crescimento, criando um ciclo vicioso de violência e exclusão social.
Abordagens policiais e a seletividade da repressão
A execução da política de drogas no Brasil revela uma triste realidade: o foco das ações repressivas recai quase exclusivamente sobre pequenos traficantes e usuários. Operações em comunidades periféricas são caracterizadas por abordagens violentas e desproporcionais, que muitas vezes resultam em mortes de civis inocentes.
Casos emblemáticos, como o massacre do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em 2021, escancaram o uso excessivo da força. Estudos da Rede de Observatórios da Segurança revelam que mais de 70% das operações policiais relacionadas ao tráfico ocorrem em áreas de baixa renda, ignorando grandes esquemas de distribuição e lavagem de dinheiro.
Enquanto isso, os grandes financiadores do tráfico permanecem intocados. Não é incomum que redes sofisticadas de tráfico, com atuação internacional, utilizem portos e aeroportos de grandes centros urbanos com pouquíssima fiscalização.
O que dizem os tribunais?
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já tem reconhecido, em decisões recentes, a necessidade de diferenciar o pequeno traficante do grande criminoso. Medidas como a substituição da prisão preventiva por alternativas cautelares em casos de tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei de Drogas) têm ganhado força, mas ainda enfrentam resistência nos tribunais inferiores.
Outro avanço significativo foi o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal, embora o critério para diferenciar usuário de traficante continue vago e pendente de regulamentação.
Propostas para um futuro mais justo
O Brasil precisa urgentemente rever sua política de drogas. Alguns passos necessários incluem:
• Descriminalização do uso pessoal: Seguir exemplos de países como Portugal, que tratam o uso de drogas como questão de saúde pública, e não criminal.
• Regulação da cadeia produtiva de entorpecentes leves: A cannabis medicinal é um exemplo de como regulamentação pode trazer benefícios econômicos e sociais.
• Revisão das penas para tráfico privilegiado: Propor penas alternativas ao encarceramento, priorizando programas de reinserção social.
Curiosidade: A eficácia de estratégias não repressivas
Em Seattle, nos Estados Unidos, o programa LEAD (Law Enforcement Assisted Diversion) substituiu a prisão de pequenos traficantes por encaminhamentos a serviços de saúde e emprego. Os resultados mostraram uma redução significativa na reincidência criminal e uma melhoria na relação entre comunidades e forças de segurança.
O Brasil tem capacidade para adotar políticas semelhantes, mas isso exige vontade política e um rompimento com a visão ultrapassada de guerra às drogas. Enquanto continuarmos a tratar o tráfico como um problema exclusivamente criminal, estaremos apenas perpetuando um sistema injusto e ineficaz.
Como cidadãos, é nosso dever questionar: até quando seremos cúmplices de uma política que destrói vidas ao invés de salvá-las?