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A cannabis e o cuidado paliativo

by Redação

Por Lucas Cury*

“Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

– Diga trinta e três.

– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…

– Respire.

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– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

– Não.

A única coisa a se fazer é dançar um tango argentino

Poema chamado Pneumotórax de Manuel Bandeira

Segundo a OMS (organização mundial de saúde) o cuidado paliativo pode ser definido como: <Uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes e familiares que enfrentam o problema da doença ameaçadora da vida através da prevenção e alivio do sofrimento por meio da identificação precoce e avaliação impecável e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituaisî

Busca-se através desses cuidados promover no paciente em seu estágio final da vida maior dignidade com o intuito, não meramente biomédico, mas de alívio do sofrimento com enfoque no cuidado, apoio e preferência do paciente.

O cuidado a saúde de um enfermo crônico inicia-se com o diagnóstico inicial, momento bem delicado e minucioso através de conhecimento científico seguindo de forma dinâmica com o tratamento adequado ao momento do paciente utilizando as ferramentas apropriadas a cada estágio da doença a até o momento em que a patologia avança chegando a fase final, onde inicia- se a necessidade dos cuidados paliativos.

O cuidado paliativo não é restrito apenas ao diagnóstico final também podendo ser ofertado em qualquer condição grave com o intuito de reduzir hospitalizações desnecessárias e a utilização de serviços de saúde dispendiosos pensando na qualidade de vida do paciente e familiares assim como na gestão de saúde pública.

Um aspecto relevante quando abordamos esse tema é a <multimorbidadeî, ou seja, quando ocorre 2 ou mais doenças concomitantes de ordem clínica e psíquica podendo ou não interagirem entre si.

Individuos dessa classe apresentam maiores adversidades em seu desfecho e a falta de previsibilidade tende a ser angustiante tanto para o paciente quanto para sua rede de apoio, além de maior propensão a riscos como limitação, incapacidade funcional, fragilidade, institucionalização, diminuição da qualidade de vida, necessidade de tratamento para complicações evitáveis e até morte precoce.

Com a consciência ampla do cenário, a busca na otimização da qualidade de vida do paciente e cuidadores envolve alcançar objetivos terapêuticos com um programa de gestão de doenças crônicas.

Em pacientes terminais existe o desafio em alinhar a adesão a múltiplas diretrizes evitando possíveis iatrogenias definida como estado de doença, efeitos adversos ou complicações causadas por ou resultantes do tratamento médico. Mesmo quando a medicação é indicada de forma correta, a polifarmácia- definida como uso regular de pelo menos cinco medicamentos- está associada a maior carga de abertura de novos quadros patológicos, aumento de custo e riscos relacionados a interação medicamentosa podendo promover resultados adversos como mortalidade, quedas, aumento no tempo e internações ceifando o paciente de seu ambiente de conforto e nicho familiar.

Outro fator a ser colocado na balança é a maior propensão a vulnerabilidades orgânicas com deficiência renal, hepática e metabólica resultante das alterações bioquímicas provocando avanço da doença base, restrições na mobilidade, alteração no apetite como anorexia ou hiperfagia e redução da massa magra.

Não é raro na prática clinica encontrarmos na lista de medicações do paciente fármacos com propostas opostas como um antidepressivo para despertar pela manhã, benzodiazepínicos ou indutores do sono para dormir a noite, tratamento para dor com efeitos colaterais como constipação, alterações cardiovasculares e metabólicas, sonolência excessiva e queda da capacidade cognitiva promovendo viés clínicos para demência.

Recordo do caso de um paciente em que a filha devotou a minha prescrição de canabinoides a cura do pai <com Alzheimerî. Relatei que ele nunca teve nenhuma síndrome demencial contudo a alteração cognitiva devia-se a alta carga medicamentosa que o deixava desconectado ao ambiente externo e com perda de afeto, além de que a maioria das medicações prescritas para o sono não melhoram a sua qualidade e sim sedam o paciente, como no caso dos benzodiazepínicos e antipsicóticos.

É sempre válido ressaltar que uma boa memória demanda de afeto e uma boa qualidade de sono (momento primordial para renovação neuronal e limpeza de sua teia). Ferramentas que induzem a sedação costumam carregar consigo o embotamento psíquico e com isso a perda do afeto levando ao paciente a falta de desejo de se conectar e interagir com o meio em que vive.

Com o ressurgimento dos fitocanabinoides na prática clínica surgiu a possibilidade de <desprescriçãoî denominado como:

Processo sistemático para identificar e descontinuar medicamentos em casos de danos existentes ou potenciais dentro do contexto das metas de cuidados, do nível de funcionamento, da expectativa de vida, dos valores, e das preferências de um paciente em particular.

O uso da cannabis medicinal é documentado como proposta terapêutica há aproximadamente 5 mil anos na Asia Central precedendo o nosso conceito atual de religiões, no entanto, sua prática sempre foi associada a um alívio espiritual sendo historicamente retratada como <erva sagradaî por hindus, budistas tibetanos e sufistas.

Abraham Meslow, psicólogo americano com atuação revolucionária nas ciências da psiquê humana, criou o conceito de

<experiencia de picoî descrito como um estado de intensa felicidade, satisfação e plenitude, no qual a pessoa se sente completamente imersa e envolvida em uma atividade ou situação. Durante uma experiência de pico, a pessoa experimenta um estado de fluxo, no qual o tempo parece passar mais rápido e as preocupações cotidianas são deixadas de lado abrindo espaço para a espiritualidade no contexto sóbrio da ciência.

Atualmente, no ocidente, engatinha-se para um movimento de ressurgimento, através do modelo ortodoxo e ensaios clínicos, para a eficácia da intervenção psicoterápica associado a uma subtância psicoativa como a psilocibina em pacientes terminais com o intuito de induzir tal <experiência de picoî.

Algumas substâncias como a cannabis e os psicodélicos podem contribuir para a redução de sintomas ansiosos e depressivos levando ao alívio da angústia existencial relacionado a morte.

Associado a psicoterapia, essas substâncias podem ajudar a aumentar a consciência no momento presente que quando associado a movimentos positivos de introspecção permite a apreciação de pequenos momentos do cotidiano do indivíduo na iminência do seu fim como ser vivo atuando como ferramenta no seu crescimnto espiritual.

*Dr. Lucas Cury é médico pós-graduado em neurologista, especialista no uso da cannabis medicinal como ferramenta terapêutica para diversas condições neurológicas. “Minha abordagem é baseada em ciência, segurança e personalização do tratamento, sempre focada na melhora da qualidade de vida dos meus pacientes. Com anos de experiência, combino tecnologia, pesquisa e atendimento humanizado para oferecer soluções eficazes para doenças como epilepsia, dor neuropática, Parkinson, Alzheimer, esclerose múltipla, autismo e distúrbios do sono”.

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