A Caatinga é um dos biomas mais importantes para o Nordeste brasileiro. Seu clima costuma ser naturalmente quente, seco e com baixa incidência de chuvas anuais, mas pode abrigar uma considerável diversidade biológica. Mais de 3 mil espécies vegetais são adaptadas ao referido bioma, muitas com potencial para o manejo nutricional de ruminantes, entre as quais a palma forrageira, a algaroba, a leucena e a maniçoba (EMBRAPA, 2016). Um manejo agropecuário sustentável da caatinga pode resultar em atividades que fomentam o sustento e a permanência das populações no Semiárido nordestino, mesmo com os desafios trazidos pela convivência com as adversidades climáticas e longos períodos de estiagem.
A bovinocultura adquiriu importância considerável no rol de atividades que rotacionam recursos e promovem renda para comunidades agrícolas regionais. Contudo, os típicos períodos com escassez de chuvas resultam em variações na oferta de forragem, fato que diminui significativamente a quantidade de alimentos disponível ao consumo dos rebanhos (CARVALHO et al., 2017). Épocas com baixa disponibilidade de forrageiras podem originar quedas na produção dos rebanhos, o que deve resultar em prejuízos consideráveis, principalmente para pequenos e médios produtores. Entretanto, existem estratégias para a utilização da vegetação adaptada à Caatinga – nativa ou não – como fonte nutricional para os rebanhos, sobretudo em cenários onde há carências de recursos.
Há diversas alternativas de culturas vegetais para a alimentação das criações em climas com baixa pluviosidade. As espécies ideais devem ter potencial forrageiro e serem sustentáveis, resilientes e ambientadas ao clima do Semiárido. A título de exemplo, a Erva-sal (Atriplexnummularia) é manejada em algumas regiões porque tem utilidade na alimentação de caprinos e ovinos. A seleção tradicional de forrageiras aparenta estar diretamente ligada à viabilidade de sua exploração e aos seus valores nutricionais, principalmente no tocante ao teor de proteína bruta (NUNES et al., 2016). Por outro lado, é preciso frisar que os vegetais cotados devem ter seu potencial tóxico previamente estudado e averiguado. Logo, é preciso que as forrageiras sejam selecionadas levando em consideração fatores como o histórico de ser uma cultura viável, o custo-benefício, se possui perfil interessante à nutrição animal e sua capacidade de armazenamento(CARVALHO et al., 2017).
A “Cannabis-cânhamo”, ou “cânhamo” (do inglês – hemp), é uma variedade da espécie Cannabis sativa L., planta angiosperma, dióica e anual, pertencente à família Cannabaceae. Conforme descrito por Pollio (2016), essa variedade canábica tem sido uma das commodities mais antigas e comerciais da sociedade humana. O interesse nacional e internacional pela cultura do cânhamo industrial vem ganhando progressiva atenção devido ao seu amplo rendimento por hectare, adaptabilidade climática, alta geração de biomassa vegetal, curto ciclo de colheita e às milhares de aplicações da planta, que vão desde a produção de fibra (resistente e de excelente aplicação têxtil), até a fabricação de biocombustíveis, plásticos, insumos para construção civil, fitoterápicos, suplementos humanos e rações animais.
As regulamentações contemporâneas que envolvem a exploração desse tipo de C. sativa L.consideram um aspecto do seu perfil fitoquímico ao distingui-lo da “Cannabis-maconha”, popularmente conhecida como “maconha”,variedade que costuma conter proporções e quantidades significativas de fitocanabinoides potencialmente psicoativos, sobretudo o delta-9-tetrahidrocanabinol e outras variantes dessa molécula. O senso predominante nas jurisprudências mundiais tem feito uso do conceito de que a “Cannabis-cânhamo”é identificada por conter no máximo até 0,3% de delta-9-THC presente no peso da planta colhida e seca (FREIRE et al., 2021). Ora, teores residuais ou inexistentes do princípio psicoativo (delta9-THC) tornam as plantas de cânhamo inviáveis para a produção de entorpecentes, mas bastante promissoras e seguras em outras utilizações.
A “Cannabis-cânhamo” costuma ser uma planta alta, com cerca de 2,5 m de altura,que rebrota após o corte se for realizado antes do estágio reprodutivo, sendo rústica, de manejo simples e barato (FARMFOR, 2021). Os espécimes ancestrais de C. sativa L. sofreram elevada hibridização ao longo de sua evolução, sobretudo em função da ação humana, que manipulou e selecionou diversos fenótipos através de intercruzamentos (MCPARTLAND, 2018). Distinguir as variedades a partir do teor de um fitocanabinoide específico tornou-se mais praticável,pois a caracterização genotípica dassubespécies (spp.) de C. sativa L. mostrou-se pouco relevante às suas práticas agrícolas. É provável que isso se deva à apreciação histórica de seu cultivo por conta de seus milhares de usos.
Há relatos seculares do plantio de C. sativa L. em solos brasileiros, datados desde o período colonial até a presente época. Estima-se que, entre os séculos XVIII e XIX, exemplares diversos foram semeados no país a partir de sementes trazidas em embarcações de colonos portugueses, escravos africanos e mercadores árabes. Carneiro (2019) descreveu que funcionou entre 1783 e 1824 uma feitoria gaúcha designada ao cultivo e exploração do cânhamo. Quase dois séculos mais tarde, a C. sativa L.teve seu status quo alterado.
Em linhas gerais, transcorrem pactuações internacionais desde a metade do século XX pelo impedimento do cultivo da espécie e suas variedades na maior parte das nações,resultando em um declínio progressivo da utilização de variedades de Cannabis na agricultura global. Isso não ocorreu por razões comprovadamente científicas, mas, sim, por fatores ligadas a vieses ideológicos que há aproximadamente quatro décadas culminaram em posturas proibicionistas (CARNEIRO, 2019).
A proscrição persiste no Brasil até o presente ano de 2022, por meio da Lei nº 11.343/06. As autoridades policiais brasileiras responsáveis pelas operações de erradicação têm apreendido e incinerado toneladas de plantas ilegais com base nos termos do artigo 32.Contudo,o parágrafo único do artigo 2º prevê que a União pode autorizar o plantio, a cultura e a colheita exclusivamente para fins medicinais ou científicos(BRASIL, 2006).
Conforme reportado por Araújo(2019), uma das regiões nordestinas com maior ocorrência contemporânea de plantios da “Cannabis-maconha” é a que engloba várias cidades do sertão pernambucano, integrantes do chamado “Polígono da Maconha”. O mesmo autor reportou que esse território se estende por cerca de 250 km ao longo do estado, no sentido do litoral ao interior, abrangendo desde os municípios de Manari até Santa Maria da Boa Vista. De um extremo ao outro, a região pernambucana do “Polígono” tem uma das maiores incidências de cultivos canábicos ilícitos do Brasil, o que denota a adaptabilidade da C. sativa L. ao semiárido e, ao mesmo tempo, o potencial da região para seu plantio.
Os cultivos ilegais encontrados nos territórios geralmente ocorrem em ilhas da calha do Rio São Francisco, regiões de serras, barragens governamentais, açudes particulares,às margens de riachos temporários da caatinga, com cacimbas escavadas nos leitos, em adutoras e terras indígenas. Nesse cenário, os plantios são realizados a céu aberto (outdoor), em sua maioria, por pequenos e médios agricultores regionais. Por vezes, existe a consorciação com outras culturas agrícolas(capim, mandioca, milho e/ou banana), camuflado sob árvores e no meio da vegetação, também em meio a sulcos ou leirões para cultivo de cebola. Esse manejo tem como principal objetivo dificultar sua identificação (ARAÚJO, 2019).
O plantio da “Cannabis-cânhamo” para fins alimentícios é muito antigo, nem um pouco antiquado e, ademais, viável em grande parte da Terra, pois existem diversos registros arqueológicos espalhados pelo planeta. A título de exemplo, foram identificadas sementes que evidenciaram o cultivo e o uso alimentar da planta pela cultura Jōmon do arquipélago japonês, o que ocorreu há pelo menos 5.330 anos (MCPARTLAND; HEGMAN; LON, 2019). Existem equipamentos desenvolvidos especificamente para sua colheita e ensilagem, pois seus caules são fibrosos e alguns chegam a 5cm de diâmetro (FARMFOR, 2021).
Alguns produtos oriundos da “Cannabis-cânhamo” têm relevante valor nutricional, como, por exemplo, óleos, extratos proteicos e o miolo (hemp heart). Conforme o posicionamento da Food And Drug Administration, são “Geralmente Reconhecidos como Seguros (Generaly Recognized as Safe – GRAS)” para uso na alimentação humana (FDA, 2021). A FDA é o órgão regulatório que atua de maneira semelhante à ANVISA do Brasil. Presentemente, existe a iminência de requisições junto à FDA para a investigação cientifica sobre se os produtos de hemp também poderão receber a mesma jurisprudência no tocante à alimentação animal, o que é bastante plausível. Há anedótica internacional crescente de produtores interessados nessa cultura, além de experimentos que utilizaram seus derivados na alimentação animal e obtiveram rendimentos zootécnicos similares aos de outras culturas tradicionais, porém com palatabilidade superior e cochos limpos após o fornecimento da planta.
Conforme reportado por Hartsel et al. (2019), as sementes da “Cannabis-cânhamo” contêm proporções relevantes de sais minerais, aminoácidos, e de ácidos graxos das famílias Ômega 6 e 3 em proporção anti-inflamatória (4:1, respectivamente). De acordo com essa revisão, agricultores e pesquisadores de todo o mundo têm voltado a atenção para o potencial dos derivados do cânhamo na terapêutica veterinária, por seus efeitos orexígenos, redutores da tríade “ansiedade-estresse-inflamação”,mas também com o intuito de agregar maior valor nutricional à alimentação das criações, sobretudo ruminantes.O estresse que acomete animais de produção está diretamente relacionado a baixos índices e prejuízos na produção de ovos, leite, penugem e lã. Também possui correlação com o baixo crescimento muscular no caso das espécies de corte.
Há diversas justificativas relevantes para o incremento do cânhamo às rações animais, das sementes à sua matéria foliar. O conteúdo nutricional proveniente da biomassa de plantas C. sativa L. precisa ser pesquisado e considerado como alimento para animais de produção, uma vez que as sementes contêm altos níveis de ácidos graxos poli-insaturados (KRIESE et al., 2004; STASTNIK et al., 2016; DELLA ROCCA e DI SALVO, 2020).Quando as sementes da planta são colhidas, podem passar por processos de prensagem para a produção de óleos. As cascas e a farinha remanescentes destinam-se ao incremento de rações, assim como ocorre tradicionalmente na cadeia produtiva de outras culturas como a soja e o caroço de algodão.
O cenário propiciado pela viabilização do cultivo da “Cannabis-cânhamo”nas terras do Semiárido pode ser favorável a incrementos importantes para a pecuária do sertão nordestino. Essa região poderá ser beneficiada por eventuais alternativas trazidas pela pesquisa agrícola, pois é reconhecida pela periódica escassez de recursos naturais básicos, desigualdades socioeconômicas, êxodo rural e desafios para a manutenção de culturas forrageiras.
2021 foi um ano que obteve o marco de trinta países que permitem o cultivo do cânhamo industrial. O trabalho de Rocha (2019) averiguou que grande parte do Nordeste brasileiro, assim como a região próxima da fronteira com o Paraguai, possui a melhor aptidão para o cultivo de Cannabis spp. no Brasil. Há evidências de que planta pode ser cultivada em áreas subutilizadas pela agricultura, sendo uma grande opção para os agricultores de regiões com os mais baixos índices de desenvolvimento do Brasil, além poder impulsionar toda uma nova cadeia produtiva do agronegócio.
REFERÊNCIAS BIBLLIOGRÁFICAS
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* Pedro da Silva – Médico-veterinário, mestrando em Ciência Animal