OMS reconhece: folha de coca não traz riscos significativos à saúde, mas proibição gera danos graves Revisão científica aponta que estratégias de erradicação da planta aumentam problemas de saúde pública e violam direitos de comunidades andinas
Uma revisão científica encomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que o consumo da folha de coca em sua forma natural, hábito diário de milhões de pessoas nos Andes, não apresenta riscos relevantes à saúde. Em contrapartida, as políticas globais de erradicação e criminalização da planta estão associadas a “danos substanciais” à saúde pública.
O relatório preliminar, analisado pelo Comitê de Peritos em Dependência de Drogas da OMS (ECDD), aponta que não há evidências de dependência ou de prejuízos clínicos significativos ligados ao uso da coca. Já as estratégias de combate, financiadas sobretudo pelos Estados Unidos, provocaram violações de direitos humanos, intoxicações por pesticidas e impactos ambientais em larga escala.
Nas últimas décadas, comunidades da Colômbia, Bolívia, Peru e Equador relataram problemas respiratórios, dermatológicos e até abortos espontâneos após a pulverização aérea de glifosato — herbicida considerado potencialmente cancerígeno. Além disso, a destruição forçada de plantações incentivou o uso intensivo de agrotóxicos tóxicos e o avanço do desmatamento em áreas remotas.
A criminalização da coca, base cultural e medicinal de povos andinos, remonta a 1964, quando a ONU classificou a folha como “socialmente nociva” e responsável por uma suposta “degeneração racial”. Desde então, milhões de indígenas foram afetados por políticas repressivas, mesmo quando cultivavam a planta apenas para fins tradicionais.
Especialistas ouvidos pela revista Filter destacam que o parecer da OMS desmonta o argumento que sustentou a proibição: “Não há evidências que justifiquem a inclusão da coca na lista mais restritiva de substâncias”, afirmou Martin Jelsma, do Transnational Institute. Para ele, a manutenção da proibição só se explica pelo temor em relação à cocaína — embora o próprio relatório destaque que sua produção exige solventes químicos externos, não sendo resultado de uma simples “conversão” da folha.
O Comitê da OMS discutirá a revisão em outubro e poderá recomendar a retirada da coca da Lista I da ONU, passo que abriria caminho para descriminalizar o uso tradicional e impulsionar economias locais com produtos derivados, como bebidas energéticas, cosméticos e têxteis. A decisão final caberá à Comissão de Entorpecentes da ONU, que votará em março de 2026.
Para Ricardo Soberón, ex-presidente da agência antidrogas do Peru e hoje ativista pelos direitos dos cocaleros, trata-se de um momento histórico: “Se a ciência prevalecer sobre o preconceito, desclassificar a folha de coca fortalecerá a luta contra o narcotráfico e devolverá dignidade às comunidades que a utilizam há séculos.”
