Por Júlia Amaral Alves
Médica de Família e Comunidade, especialista em Sistema Endocanabinoide e outras práticas integrativas
A história da cannabis está intimamente ligada à história das mulheres e à evolução das sociedades. Cannabis e mulheres caminham juntas há muito mais tempo do que nossas jovens mentes conseguem contemplar ao pensar na linha do tempo das civilizações. Relatos e pesquisas sugerem que, já em 1400 a.C., na Índia, a cannabis era utilizada para aliviar dores de parto e em casos de aborto, muitas vezes por meio do consumo do bhang, uma mistura tradicional de cannabis com leite. Esse uso tinha (e tem) não apenas finalidades medicinais, mas também estava vinculado a tradições espiritualistas. Há inclusive ilustrações sagradas que sugerem o uso da planta milenar pela divindade Shiva, do Hinduísmo.
No Egito antigo, há relatos semelhantes do uso da planta no manejo de dores pélvicas. No Brasil, muitas etnias indígenas, como o povo Huni Kuin, localizado majoritariamente no Acre, ainda hoje utilizam a cannabis em contextos espirituais e rituais, bem como para a cura de dores corporais, partos e condições mentais. Ou seja, a história da cannabis continua entrelaçada com a nossa até os dias de hoje.
Retornando para o campo da saúde da mulher no contexto atual, países como Estados Unidos e Canadá, que estão mais adiantados na prática e na legislação do uso medicinal da cannabis, já utilizam a planta não apenas em óleos ou flores, formas mais comuns aqui no Brasil, mas também por via vaginal, com supositórios internos. Essa é uma prática inovadora e importante, que precisa ser mais discutida e estudada.
Um ponto interessante é que o uso por via vaginal evita o metabolismo de primeira passagem pelo fígado, o que significa que uma quantidade maior de canabinoides chega ao corpo em comparação à administração oral. A biodisponibilidade da administração oral é considerada baixa, entre 10% e 15%. Eliminando essa etapa, o efeito terapêutico pode ser mais eficiente. Além disso, a região vaginal é altamente vascularizada, facilitando a absorção da medicação.
Embora ainda seja necessário realizar mais estudos científicos robustos sobre essa forma de uso, já vemos resultados promissores. No Brasil, algumas associações já fornecem formulações via vaginal. A Santa Gaia, localizada em Lins, São Paulo, recentemente lançou um óvulo vaginal rico em CBD para o tratamento de condições ginecológicas, como a endometriose, que afeta milhões de brasileiras, causando dor intensa e prejudicando a qualidade de vida. Esses óvulos também podem ser utilizados para aliviar cólicas menstruais intensas.
Conversando com uma médica e professora nos Estados Unidos, ela compartilhou como suas pacientes têm tido respostas positivas com o uso dos supositórios vaginais, relatando alívio rápido dos sintomas locais. Tenho acompanhado pacientes com quadros semelhantes e, além dos métodos de inalação e oral, observo que o uso vaginal tem mostrado resultados interessantes. O útero e todo o sistema reprodutor feminino possuem grandes concentrações de receptores CB1, o que nos ajuda a entender essa relação importante entre o Sistema Endocanabinoide (SEC) e as patologias do sistema reprodutor.
Por fim, é importante lembrarmos que as práticas médicas e de saúde no geral, sempre estarão atreladas às manifestações culturais e ideológicas de uma dada época e sociedade. Nesse sentido, acredito que tal tema possa ser atravessado, e nesse caso negativamente, pelas ideias e resistências culturais ao uso de medicações via anal ou vaginal. No Brasil, ainda há tabus e preconceitos em relação ao uso de medicamentos por via anal, um método que, embora amplamente utilizado em diversos contextos médicos, é muitas vezes visto com desconforto ou desinformação. Aproveito aqui o gancho sobre esse o tema dos supositórios vaginais, para reforçar que o uso anal, seja por mulheres ou homens, poderia também ser mais amplamente ser utilizado. É importante discutir e normalizar esse tipo de tratamento, que pode ser altamente eficaz e seguro. Que tal abrirmos as nossas mentes para novas possibilidades?”
Júlia Amaral Alves é médica especializada em Medicina de Família e Comunidade, com vasta experiência no SUS e atuando junto a comunidades tradicionais indígenas, ribeirinhas e outras populações vulneráveis, como pessoas em situação de rua e em áreas periféricas. Defensora da valorização dos povos tradicionais, das lutas antiproibicionistas e antimanicomiais, Júlia também é especialista em Sistema Endocanabinoide e pós-graduada em Ginecologia Natural. Ela utiliza a prescrição de cannabis e outras práticas fitoterápicas no suporte de diversas condições de saúde, promovendo um cuidado integral.