Em decisão histórica para os direitos indígenas e o acesso à cannabis medicinal, a 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) concedeu salvo-conduto a um pajé da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, autorizando-o a importar sementes de cannabis, cultivar a planta e extrair o óleo para uso pessoal. A decisão, tomada por maioria em julgamento no último dia 15 de julho, reconheceu a legitimidade dos saberes tradicionais dos povos originários como suficientes para o manejo seguro da planta, ainda que sem formação técnica acadêmica.
A medida reformou a decisão de primeira instância que havia negado o habeas corpus ao pajé, sob argumento de falta de capacitação formal. A relatora do caso, desembargadora Simone Schreiber, criticou a visão eurocêntrica que deslegitima conhecimentos ancestrais transmitidos oralmente entre gerações. “O uso de plantas para tratamento e cura pelos indígenas não decorre de um conhecimento acadêmico, mas sim de um saber tradicional, transmitido de geração em geração”, destacou.
Líder espiritual pertencente ao tronco Tupi-Guarani, o pajé foi diagnosticado com transtorno de ansiedade generalizada. Após tentativas frustradas com tratamentos convencionais, encontrou alívio nos sintomas por meio do óleo de cannabis. Contudo, o alto custo do produto importado o impediu de seguir com o tratamento, levando-o a buscar na Justiça o direito de cultivar e produzir seu próprio remédio.
A advogada Juliana Sato Gomes Amorim, que representa o pajé, defendeu o caráter terapêutico, espiritual e cultural do uso da planta, contextualizando a prática dentro da tradição da comunidade indígena. O pedido de salvo-conduto visava garantir não apenas o direito à saúde, mas também a autonomia cultural assegurada pelo artigo 231 da Constituição Federal.
A decisão do TRF-2 se insere em um cenário de mudança na jurisprudência brasileira. Tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm autorizado o cultivo doméstico de cannabis para fins medicinais, reconhecendo o fracasso da atual política de combate às drogas e a urgência de abordagens mais humanas, inclusivas e baseadas em direitos. Para a relatora, impor critérios ocidentais de formação para o manejo da planta é perpetuar uma lógica colonial excludente. “A exigência de curso formal para o manejo da planta impõe uma lógica colonial e desconsidera saberes historicamente marginalizados”, reforçou, citando a perspectiva decolonial como fundamento jurídico e ético.
Com a decisão, o pajé poderá cultivar cannabis e produzir o próprio óleo, desde que exclusivamente para uso medicinal pessoal, sem o risco de sanções penais. Trata-se de mais um precedente relevante em direção a uma política de drogas antiproibicionista, que respeite os saberes ancestrais e promova o acesso à saúde sem discriminação cultural, social ou econômica.
