Avaliação inédita da EFSA expõe lacunas científicas sobre segurança e ocorrência do canabinoide, enquanto governos recorrem a bans generalizados
Enquanto governos ao redor do mundo aceleram a adoção de proibições amplas sobre substâncias classificadas como “cânhamo intoxicante”, a própria ciência regulatória europeia admite que sabe muito pouco sobre um dos principais alvos dessas medidas. A Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) publicou, em novembro de 2025, sua primeira avaliação científica abrangente sobre o delta-8 tetrahidrocanabinol (delta-8 THC), reconhecendo uma profunda escassez de dados básicos sobre o composto.
O parecer foi solicitado pela Comissão Europeia após o aumento da detecção de delta-8 THC em alimentos derivados do cânhamo em países da União Europeia. A demanda surgiu em meio à pressão política para conter a circulação de produtos psicoativos fora do mercado regulado da cannabis, cenário que tem levado diversos países a optar por proibições generalizadas, mesmo diante de evidências científicas limitadas.
No documento, a EFSA conclui que, por ora, o delta-8 THC deve ser enquadrado sob o mesmo limite de referência aguda já aplicado ao delta-9 THC, principal composto psicoativo da cannabis. Assim, a dose de referência de 1 micrograma por quilo de peso corporal passa a valer para a soma dos dois canabinoides em alimentos. A decisão se baseia na semelhança dos mecanismos de ação, já que ambos atuam como agonistas dos receptores CB1 e CB2 do sistema endocanabinoide.
Apesar disso, a autoridade europeia é explícita ao reconhecer que essa equiparação ocorre na ausência de dados robustos. Segundo a EFSA, não existem estudos controlados adequados em humanos em faixas de baixa dose, consideradas relevantes para a exposição alimentar. Também faltam testes padronizados sobre genotoxicidade, além de evidências consistentes sobre efeitos reprodutivos, desenvolvimento embrionário, impactos endócrinos e neurotoxicidade.
Na prática, grande parte da avaliação de risco do delta-8 THC foi construída por extrapolação a partir do delta-9 THC e de um único estudo clínico envolvendo apenas 19 adultos saudáveis. Nesse ensaio, efeitos psicotrópicos, cognitivos e fisiológicos foram observados em doses orais relativamente elevadas, entre 10 mg e 75 mg. Ainda assim, o painel concluiu que o delta-8 apresenta potência semelhante ou ligeiramente inferior à do delta-9, adotando um fator de potência relativo igual a um.
Outro ponto sensível destacado no relatório é a incerteza sobre a própria natureza do delta-8 THC. A EFSA admite que não está claro se o composto ocorre naturalmente na planta de cannabis em quantidades relevantes ou se sua presença em produtos comerciais resulta majoritariamente de processos semissintéticos, muitas vezes impulsionados por brechas regulatórias e pela ausência de um marco claro para a cannabis como um todo.
O documento também cita relatos internacionais de eventos adversos, sobretudo envolvendo crianças expostas a produtos comestíveis não regulados, como balas e gomas com aparência de doces convencionais. Para a EFSA, esses casos evidenciam menos um problema intrínseco da substância e mais os riscos de um mercado desorganizado, sem controle de qualidade, rotulagem adequada ou restrições claras de acesso.
Embora não tenha competência para decidir sobre proibições, a avaliação da EFSA escancara uma contradição central das políticas atuais: decisões de banimento estão sendo tomadas antes que questões científicas elementares sejam respondidas. Toxicidade, limites seguros de consumo, ocorrência natural e efeitos de longo prazo seguem em aberto, enquanto a resposta política tem sido majoritariamente repressiva.
O caso do delta-8 THC espelha um dilema mais amplo da política de drogas contemporânea. Em vez de investir em regulação baseada em evidências, monitoramento de mercado e pesquisa científica independente, muitos países optam por proibições genéricas que empurram produtos e consumidores para a informalidade. A própria EFSA reconhece que a avaliação de risco do delta-8 depende de dados ainda inexistentes, reforçando que o descompasso entre ciência e política segue sendo uma marca da regulação dos canabinoides no cenário global.
