Anvisa e Ministério da Agricultura têm até esta terça-feira, 30 de setembro, para publicar normas definitivas sobre cultivo de cannabis medicinal, abrindo caminho para mercado potencial de R$ 30 bilhões
O prazo estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que o governo federal regulamente o cânhamo industrial no Brasil se encerra hoje, 30 de setembro de 2025. A decisão, resultado do Incidente de Assunção de Competência (IAC 16), obriga o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a definir as regras definitivas para cultivo e uso da Cannabis sativa para fins medicinais, de pesquisa e industriais.
Este marco regulatório representa uma mudança estrutural para um setor que já movimenta R$ 853 milhões no país e atende 672 mil pacientes em 2024. Com a regulamentação completa, especialistas projetam que o mercado brasileiro pode atingir até R$ 30,5 bilhões anuais, posicionando o país como protagonista mundial na cannabis medicinal.
O Mapa demonstrou progresso concreto ao publicar, em julho, a Portaria SDA/MAPA nº 1.342/2025, que estabelece os requisitos fitossanitários para importação de sementes de Cannabis sativa. A norma define critérios rigorosos para que instituições de pesquisa e empresas autorizadas possam importar e cultivar variedades com até 0,3% de THC — o principal composto psicoativo da planta.
“A importação de sementes de cannabis dependerá de protocolos sanitários de certificação do país de origem”, determina a portaria. As sementes devem vir acompanhadas de Certificado Fitossanitário que comprove a ausência de pragas específicas como a Grapholita delineana e fungos causadores de mancha ramulária. A norma também prevê inspeção fitossanitária obrigatória no Brasil, com custos por conta do importador.
A Anvisa enfrenta o maior desafio ao precisar alterar a histórica Portaria 344/1998, que regula todas as substâncias controladas no Brasil, incluindo a Cannabis. A agência desenvolveu uma minuta de resolução que estabeleceria as distinções entre maconha recreativa e cânhamo industrial, permitindo que produtores e instituições de pesquisa cultivem a planta legalmente.
Contudo, a proposta foi retirada de pauta na reunião da Diretoria Colegiada em agosto, gerando incertezas sobre o cumprimento do prazo. “A Anvisa não vai cumprir?”, questionou a advogada especialista Cláudia de Lucca Mano, que acompanha o processo.
A minuta previa regras rígidas para o cultivo: autorização especial da Anvisa para cada produtor, rastreabilidade completa da produção, monitoramento por câmeras e destruição obrigatória de plantas que ultrapassem o limite de 0,3% de THC.
Estudos técnicos revelam o imenso potencial econômico da regulamentação. Um relatório conjunto da Embrapa e Instituto Ficus, de 2023, estimou que o mercado global de derivados de cânhamo movimenta US$ 7 bilhões, com projeções de crescimento anual de 16% a 25% até 2033.
No Brasil, a cadeia produtiva do cânhamo poderia gerar mais de 14 mil empregos e receitas líquidas de R$ 5,76 bilhões até 2030, superando o retorno financeiro de culturas tradicionais como algodão, soja, milho e canola. Para atender à demanda projetada até 2030, o país precisaria de 64 mil hectares de cultivo, com investimento inicial de R$ 1,23 bilhão gerando retorno 4,7 vezes maior.
O setor privado e instituições de pesquisa não ficaram inertes durante o processo regulatório. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) firmou acordo de cooperação técnica com The Green Hub e Instituto Ficus para o projeto “Hemptech Brasil”, focado em pesquisas sobre cultivo de cannabis para fins medicinais.
Em setembro, a Anvisa recebeu visita da Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa para tratar sobre autorizações para pesquisas relacionadas ao cultivo da Cannabis sativa. O diretor da Embrapa, Clênio Pillon, destacou “a potencialidade da Cannabis sp. para a agricultura brasileira, com aplicações que vão desde o uso medicinal até a produção de fibras industriais”.
A regulamentação definitiva teria impacto direto no acesso aos tratamentos. Atualmente, o Brasil importa produtos de 413 empresas internacionais, com custos elevados que muitas vezes forçam pacientes a recorrer à Justiça. A produção nacional poderia reduzir significativamente esses custos e ampliar o acesso.
Para empresas como a Direto Pharma, comandada pelo CEO Silvinei Toffanin, a regulamentação representa uma oportunidade estratégica. “Estamos estudando com bastante cuidado a possibilidade de investir no cultivo aqui mesmo no Brasil, sempre com todo o rigor científico e tecnológico que o momento exige”, declarou Toffanin anteriormente.
Marcos Regulatórios e Coordenação Interinstitucional
O Plano de Ação do Governo Federal, protocolado em maio pela Advocacia-Geral da União (AGU), estabeleceu um cronograma detalhado envolvendo diversos órgãos. A proposta inclui:
- Edição de novos atos normativos para regular toda a cadeia produtiva
- Alteração da Portaria 344/1998 para permitir o cultivo de cânhamo industrial
- Realização de consultas públicas e diálogo com a sociedade civil
- Articulação entre diferentes órgãos do Executivo
A Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann) e o Centro de Tecnologia e Inovação da Cannabis (Cticann) identificaram três grandes desafios: coordenação operacional entre fiscalização fitossanitária (Mapa) e controle sanitário (Anvisa), maior diálogo com o setor e definições técnicas de segurança.
Diversos países já regulamentaram o cânhamo industrial, incluindo Canadá, Estados Unidos e China, que é um dos maiores produtores mundiais. A regulamentação brasileira colocaria o país em alinhamento com práticas internacionais consolidadas, potencializando exportações e parcerias estratégicas.
A decisão do STJ de novembro de 2024 estabeleceu claramente que “compete ao Estado brasileiro estabelecer a política pública atinente ao manejo e ao controle de todas as variedades da Cannabis, inclusive o cânhamo industrial”. O tribunal determinou que o cânhamo com menos de 0,3% de THC não pode ser classificado como substância proscrita pela legislação antidrogas, sendo inapto para produção de drogas devido à baixa concentração de princípios psicoativos.
O encerramento do prazo hoje coloca o governo federal em uma encruzilhada regulatória. O cumprimento da determinação judicial abriria caminho para o desenvolvimento de uma nova indústria estratégica, com potencial de transformar o Brasil em hub de produção e exportação de produtos derivados de cannabis medicinal.
O não cumprimento, por outro lado, manteria o país dependente de importações custosas e perderia uma oportunidade histórica de liderar um mercado global em expansão. Mais de 670 mil pessoas no país utilizam fármacos à base de cannabis para tratamento de condições graves como esclerose múltipla, epilepsia refratária e dor crônica.
Com o mercado atual de R$ 853 milhões em 2024 e projeção de R$ 1 bilhão em 2025, a regulamentação definitiva representa não apenas uma questão de compliance judicial, mas uma decisão estratégica sobre o futuro da saúde pública e desenvolvimento econômico brasileiro. A definição das regras para cultivo de cânhamo industrial pode marcar o início de uma nova era para a medicina brasileira e posicionar o país como referência mundial em cannabis medicinal.
