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Por que prenderam? A carga de ser preto era maior que a grama da Maconha

by contato

“Experimenta nascer preto, pobre, na comunidade…Você vai ver como são diferentes as oportunidades”, como explana Bia Ferreira em sua música “Cota Não É Esmola” as diferentes realidades separam o Brasil do preto do daqueles que possuem privilégios sociais, históricos e culturais. A herança da violência escravocrata permeia como uma névoa todos os atos e ações da comunidade afro-brasileira.

Imaginemos então um jovem preto com baixo poder aquisitivo, ele é catador de material reciclável e está voltando para casa, a polícia vê o indivíduo e decide pará-lo, na revista descobrem 0,6 gramas de Maconha e 9,6 gramas de cocaína, em outra situação temos um homem, empresário, dono de uma metalúrgica e serralheria, os agentes policiais o abordam e identificam que portava 130 quilos de Maconha em seu veículo e 199 munições de fuzil calibre 7,62, próprio das forças armadas, a pergunta que fica é: Qual foi descrito como traficante?

A situação apresentada anteriormente é baseada em uma história real, o jovem Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão, por tráfico e associação com tráfico, e até em sua audiência teve de permanecer algemado, já o empresário Breno Fernando Solon Borges, filho na época da presidente do Tribunal Regional do Mato Grosso do Sul, que deu o nome da mãe para não ser preso, recebeu o direito de permanecer em liberdade, após um curto período detido, por sua defesa ter conseguido um laudo médico, no qual, o detento foi diagnosticado com “Síndrome de Borderline”, condição que possui entre suas características desvios comportamentais.

O caso nos mostra ainda nas entrelinhas um outro problema relacionado a chamada “prisão provisória”. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) sobre o ano de 2019, descritos em reportagem no site do Governo Federal, a população carcerária está estimada em 773.151 pessoas e dentro deste número o percentual de presos provisórios (sem condenação) é de 33%, nessa contagem estaria o nosso jovem Rafael Braga, que sem acessos ou facilidades permanece preso, assim como muitos outros pretos considerados “traficantes”.

A Lei Antidrogas
Em 2006 entrou em vigor a nova Lei Antidrogas (11.343/2006), em uma percepção de que as repressões anteriores deixaram de surtir efeito no combate ao tráfico. Na teoria as novas medidas adotadas tinham o papel de garantir que o indivíduo teria alternativas por meio da Justiça Restaurativa, ou seja, visava livrar o usuário do vício e exercitar sua autodeterminação, expressando seu direito à dignidade garantido pela Carta Magna, outro ponto é que caso não pudesse ser provado que o infrator traficava as drogas em sua posse, na hora do flagrante, à criminalização deveria ser suspensa e restaurada a liberdade em conjunto com as medidas educativas (SANTOS, 2016).

Os dados mostrados pelo Depen vão em contramão ao que foi projetado na Lei Antidrogas, quando identificamos a porcentagem de pessoas em prisão provisória ou acusadas de tráfico com provas capciosas. Como aponta o pesquisador e professor do curso de Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Gênesis Cavalcanti em entrevista ao Portal Correio: “Isso forja o traficante como o maior inimigo da sociedade: um ser violento, armado e cruel. A esmagadora maioria das pessoas presas por tráfico de drogas é formada por jovens negros, desarmados, com pequenas quantidades e que atuam como varejistas, extremamente vulneráveis à repressão policial”.

A questão da “guerra às drogas” se mostra, cada vez mais, como uma luta contra a população em estado de vulnerabilidade social ou sem condições financeiras para conseguir uma defesa eficiente contra as acusações de tráfico. Cavalcanti (2019) coloca que a proibição da venda e consumo de algumas substâncias tidas como ilícitas, não vem historicamente de uma preocupação com a saúde, mas sim, de causas políticas que tinham como objetivo o controle de corpos e a eliminação de vidas visualizas como menos valiosas.

Escravidão, Cannabis e Preconceito
Não há como falar de decisões proibitivas relacionadas ao consumo de elementos classificados como entorpecentes, sem adentrar na questão da Maconha e seu passado antes da proibição, já que este é um dos mais antigos registros no Brasil relacionado ao tema de combate às drogas. Na época do Renascimento o “cânhamo” pertencente a espécie Cannabis Sativa, era visto como um dos mais requisitados elementos agrícolas na Europa, sendo utilizado para a produção de páginas de papel, pinturas e outros, além disso, a palavra Canvas, usada por vários dialetos para se referir ao termo “tela” vem de uma modificação holandesa do latim “cannabis” (BARROS; PERES, 2011).

Mas então, o que de fato ocorreu para que houvesse uma mudança nessa narrativa sobre a espécie da Cannabis Sativa e seus derivados (Cânhamo e Maconha) em terras brasileiras e europeias? Apesar de vários contextos, uma possível reposta que pode ser dada à essa pergunta está relacionada a diáspora africana e a escravidão imposta pelos colonizadores. O uso de substâncias que alteram a percepção sobre a realidade, comumente chamadas de “drogas”, tiveram e ainda têm um importante papel em culturas afro-religiosas, a ingestão e inclusão do produto não estava conectada com a alteração dos sentidos em si, mas sim, com a obtenção de conhecimento em conjunto com uma elevação espiritual (SAAD, 2019).

Entretanto, tudo isso foi sendo aos poucos dessacralizado pelos colonizadores, por outro lado também há a presença de uma perspectiva que começou com o psiquiatra Cesare Lombroso, para ele o crime era um fenômeno biológico, ou seja, o criminoso era um cidadão que nasceu diferente dos demais, desse modo, o direito de castigar era um ato com a finalidade de preservar o restante da sociedade. A psiquiatria lambrosiana chegou em meados do século XIX ao Brasil, com a ideia de que algumas “raças” tinham traços naturais de criminosos, esse discurso acabou por criminalizar os pretos por sua pele, religiosidades e vivências, englobando consequentemente o uso da Maconha, que durante muito tempo foi denominada como “Fumo da Angola”, aqueles que a consumiam já eram vistos como criminosos de forma antecipada pelas autoridades legais (BARROS; PERES, 2011). As terras brasileiras não só receberam a perspectiva de Cesare Lombroso, como também produziram a primeira lei do mundo voltada à criminalização do uso da Maconha, dentro de um vergonhoso protagonismo, como destaca o texto do Blog Canábico “Hempadão” publicado na Revista Carta Capital.

Ainda de acordo com a matéria em 1830 o texto da lei que proibia o consumo da Cannabis dizia: “É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados […] e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia…”. Apesar das criminalizações, a maconha continuou sendo utilizada pelos brasileiros, havia-se o medo de que das camadas populares a planta adentrasse outros setores, um médico paulista relata: “depois de passar das seitas religiosas aos jogadores e às prostitutas de cor e, através dessas aos brancos […] que parecem possuir menos defesas gente [frente] a seus efeitos patológicos, ameaça transformar-se em um verdadeiro flagelo nacional” (SAAD, 2019). A opinião do médico só espelha a mentalidade de estudiosos e especialistas da época, mergulhados em preconceitos.
Hoje com novas pesquisas voltadas para os efeitos medicinais da espécie Cannabis Sativa, percebemos que a Maconha possui propriedades terapêuticas e que sua criminalização advinda de estudos pseudocientíficos e racistas não cabem mais no cenário mundial e brasileiro, na verdade, só corrobora para a prisão de pessoas fragilizadas e destituídas de aportes financeiros.

Uso terapêutico e adulto da Maconha
Apesar de culturas orientais utilizarem a Cannabis para fins medicinais a séculos, só recentemente os países ocidentais decidiram adentrar mais profundamente em seus componentes, benéficos para várias doenças. Foi descoberto que dentro do corpo humano há um sistema endocanabinóide com receptores que interagem com substâncias presentes na Maconha, eles são conhecidos como CB1 e CB2 e dentro do organismo têm papéis no sistema nervoso e imunológico (HALL, 2019). Em outras palavras, o corpo de cada pessoa tem um funcionamento que é aberto às propriedades presentes na espécie da Cannabis Sativa.

Os efeitos positivos em tratamentos utilizando os fitocanabinoides encontrados na Maconha, fez com que mais de 35 países regulamentassem o seu uso em casos de doenças graves ou raras e no Brasil a importação de produtos a base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabidiol (THC) é regulamentada desde 20157, porém, essa realidade ainda é muito distante para a maioria dos brasileiros devido ao alto custo dos medicamentos.

A regulamentação do uso adulto e terapêutico da planta não deve ser visto com maus olhos, o Dr. Drauzio Varella8 pontua que legalizar não é liberar totalmente, que é possível criar leis que protejam os adolescentes, disciplinem o uso e que possibilitem uma saída àqueles que não quiserem mais utilizar.

Em entrevista para essa coluna Valéria Moura – Professora Universitária em Saúde e Enfermeira de Saúde do Trabalho e Coletividade, mais conhecida comoEnfermeira da Cannabis, destaca também alguns pontos sobre a descriminalização da Maconha:

1. Como você enxerga a importância da descriminalização da maconha nos dias de hoje no Brasil?
É cada vez mais premente, a necessidade de descriminalização da maconha no Brasil. A importância desse ato, está para além do direito de ir e vir, ou do exercício da liberdade de escolher os caminhos pelos quais o indivíduo deseja conduzir sua vida pessoal. Descriminalizar a maconha, no atual contexto brasileiro, é uma questão de saúde pública! Pessoas estão morrendo sem acesso a medicamentos que solucionem de fato suas dores e adoecimentos, no entanto, o lobby da indústria farmacêutica e o apelo capitalista de nossos governantes, continuam sendo privilegiados, em detrimento do bem mais precioso: a vida!

2. Você acredita que a população negra e periférica, é mais atingida pela criminalização da Cannabis no Brasil?
Totalmente! Prova disso são os números trazidos pelo próprio governo, que por meio do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2019, mostrou que a maioria dos detentos eram pretos, que estavam detidos em virtude de tráfico de drogas. Um em cada três presos no Brasil, responde por tráfico de drogas! Segundo o especialista em segurança pública, Guaracy Mingardi, o crescimento do encarceramento justifica-se pela brecha deixada na Lei de Drogas, de 2006, que não estipula a quantidade que diferencia tráfico, de porte para consumo próprio, fazendo com que muitos juízes, para garantir a prisão, condenem todo mundo por tráfico, pois porte de drogas, apesar de ser crime, rende apenas pequenas sanções. E não deve ser novidade para ninguém que, se um preto for pego com um baseado na favela, será preso como avião e condenado por tráfico, enquanto um branco abordado no bairro nobre com algumas trouxinhas de pó, será sempre visto apenas, como um usuário!

3. Quais são os caminhos que podem levar à descriminalização e um menor percentual de racismo e violência que vemos nas comunidades periféricas?
A resposta é muito simples, onde existe educação existe consciência também. O caminho que nos leva à libertação da descriminalização da maconha, como também de todas as outras drogas, seria dar aos indivíduos, à sociedade como um todo, a liberdade de agir de acordo com a sua vontade, quando você dá educação você forma pessoas responsáveis, indivíduos responsáveis, não só consigo, com sua saúde, mas com o outro também. Quando você tem consciência e responsabilidade com o outro, obviamente as questões envolvendo violência diminuem também. Então é isso! A minha resposta é muito simples, o caminho para a descriminalização e diminuição da violência é a educação, formação de indivíduos conscientes e responsáveis consigo, com o meio ambiente e a sociedade a sua volta! Percepções Não é possível negar que há, como foi pontuado anteriormente, uma seletividade legal e policial para aqueles que são taxados de traficantes, com base em argumentos e prerrogativas duvidosas. O uso da maconha em suas mais diversas vertentes deve representar um caminho de progresso e não de ilegalidade e racismo, ela precisa ser percebida de maneira ampla e científica.
O passado escravocrata ainda persegue silenciosamente aqueles nascidos pretos ou em comunidades carentes, o julgamento permanece sobre a pele ou poderíamos até dizer que segue uma perspectiva lambrosiana, onde o indivíduo de determinada “raça” é percebido naturalmente como criminoso.

A dessacralização da maconha e sua associação de forma negativa a comunidade preta advinda do continente africano e de outras partes do mundo, efetuada sistematicamente pela colonização e pela produção de leis racistas, é um crime carregado através dos séculos. Mas, como destaca a Enfermeira da Cannabis ele pode ser combatido e revertido aos poucos pela educação, a sociedade precisa entender o peso de atitudes tomadas anteriormente e o seu reflexo na atualidade.

Como alerta a escritora Chimamanda Ngozi Adichie “A história sozinha cria estereótipos, e o problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história”. Nosso papel é lutar constantemente para que a versão completa da história seja conhecida, difundida e incorporada em nossas decisões e pensamentos. Por isso: Avante Maconha!
Referências

BARROS, A; PERES, M. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Revista Periferia, v.II, nº2, 2011. CAVALCANTI, G. J. V. A crise estrutural do capital e o encarceramento em massa: o caso brasileiro. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2019. Disponível em: < https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/16711/1/Arquivototal.pdf >. Acesso em: 13 de Abr. de 2021. HALL, J. M. B. N.
O papel do sistema endocanabinóide no controle da dor neuropática. Porto: UFP, 2019. Disponível em: < https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/8714/1/PPG_31165.pdf> . Acesso em: 18 de Abr. de 2021. SAAD, L. “Fumo de negro”: A criminalização da Maconha na pós-escravidão. Salvador: EDUFBA, 2019. Disponível em: < fumo-negro-RI.pdf > Acesso em: 17 de Abr. de 2021.
SANTOS, K. G. S. A Lei nº 11.343/2006 e suas inovações no âmbito penal ao usuário de drogas. Âmbito Jurídico: o seu portal jurídico na internet. 2016. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-145/a-lei-n-11-343-2006-e-suas-inovacoes-no-ambito-penal-ao-usuario-de-drogas/ >. Acesso em: 12 de Abr. de 2021.

  • Texto publicado originalmente no Favela em Pauta – https://favelaempauta.com/maconha-uma-questao-de-saude-publica/

* Cainã Marques – Sou jornalista por formação e atuo na Rede 1MiO – Unicef, já na academia sou mestrando e faço pesquisa nas frentes de política, relações internacionais e religião. Enquanto ativista e profissional com cunho social, também exerço o papel de Social Media na Associação Curando Ivo, que luta pela Descriminalização da Maconha no país.