Suponha que uma das perguntas do censo do IBGE fosse: “a maconha é proibida no Brasil?” Qual seria a resposta da imensa maioria da população? Certamente, teríamos a quase totalidade das pessoas afirmando que sim, a maconha é proibida no Brasil. Mas será que essa pesquisa corresponderia à realidade brasileira ou seria apenas a visão embotada pelo proibicionismo implantado na nossa sociedade há quase 100 anos?
Se olharmos mais atentamente a “cena canábica” brasileira, veremos que a realidade não é o que parece e que a maconha é proibida sim, mas nem tanto. Pois assim como no início do processo de proibição, há uma maconha que é proibida enquanto outra é, não apenas permitida, mas autorizada pelo governo e vendida nas farmácias. E qual a diferença entre elas? A resposta segue sendo a mesma de há 100 anos: as pessoas que a produzem e dela fazem uso.
Na história da proibição da cannabis no Brasil há fenômenos bastante semelhantes ao que estamos vivenciando atualmente. Nas décadas de 30/40, enquanto se instaurava no país uma legislação proibitiva das práticas e usos da população preta, com destaque para a maconha; eram vendidas nas farmácias preparações de cannabis (e até cigarros) prescritas pelos médicos. A mesma planta cujo uso era causa de encarceramento para uns, rendia dividendos para outros.
No Brasil de 2022, cenário e personagens se mostram bastante semelhantes, como a nova versão de uma novela antiga ou um angustiante déjà vu. De um lado, já são quase vinte os “Produtos Derivados de Cannabis” autorizados pela Anvisa a serem vendidos nas farmácias do país, havendo até venda on line(o que não é permitido no Brasil, pois segundo a RDC 327, derivados de cannabis devem ser prescritos em receituário de controle especial, só podendo ser adquiridos de forma presencial e com retenção da receita). De outro lado, seguem criminalizados os usuários, os pacientes e até as associações, que produzem os mesmos “Derivados de Cannabis” que a Anvisa permite sejam vendidos nas farmácias.
Tal fenômeno deve nos levar a refletir que tipo de regulamentação nós queremos: uma regulamentação que privilegie a indústria e o capital, restringindo o acesso à terapêutica canábica à pequena parcela da população capaz de arcar com os custos do tratamento? Ou uma regulamentação ampla, que devolva essa planta à sociedade e promova as mudanças necessárias na atual política de drogas, proporcionando acesso real à cannabis como ferramenta terapêutica, sobretudo para os mais vulneráveis socioeconomicamente?
É certo que em breve a cannabis voltará à pauta das discussões no Congresso Nacional e não podemos correr o risco de reproduzir o que foi feito no início da proibição: manter uma planta proibida como forma de encarcerar uma parcela da população, enquanto empresas lucram com sua exploração e com a política de violência decorrente desse proibicionismo. Estamos vivenciando a oportunidade de mudar o rumo da história e reparar as injustiças perpetradas em quase 100 anos de proibição da cannabis no Brasil, não podemos “perder o bonde” mais uma vez. Por isso é importante posicionar-se, criar espaços de discussão e fazer esse tema avançar de modo que tenhamos a regulação que o país precisa e deve ao seu povo há quase um século.
Sheila Geriz – Paciente e mãe de paciente usuário da Terapêutica Canábica, coordenadora da Liga Canábica – PBC, analista judiciária no TJPB e mestre em Direito pela UFPB.