A Cannabis é tida como vilã quando o assunto é psicose, tanto para o senso comum, como para a categoria médica. De fato, encontra-se bem estabelecida a tendência do delta-9-tetrahidrocanabinol, o THC, em deflagar sintomas psicóticos (como desorganização do pensamento, delírios e alucinações) em pacientes portadores de transtornos desta natureza, e também na população geral. Atualmente, portanto, o uso medicinal do THC não é indicado no contexto de um risco aumentado para transtornos psicóticos.
Entretanto, sabendo das múltiplas possibilidades da farmacopéia a base de cannabis, que vão desde as centenas de outros canabinóides presentes nesta planta, a várias formas de administração dessas substâncias, será que a cannabis não apresenta potencial terapêutico para pacientes com sintomas psicóticos? Podemos melhorar a qualidade de vida desses sujeitos através da medicina canábica? A relação entre cannabis e transtornos psicóticos, em especial o espectro esquizofrênico, é estreita, apesar de não haver até o presente momento uma relação causal estabelecida. Esta população tem uma tendência maior ao uso de cannabis, e atualmente postula-se que tal fato tenha relação com um potencial de alívio de sintomas vividos por estes sujeitos, motivando a busca por esta planta para mitigar o sofrimento psíquico, apesar do risco de piora de manifestações psicóticas com uso do THC. Dá-se o nome de hipótese de causalidade reversa a esta interpretação.
Um estudo que acendeu o debate acerca do potencial terapêutico da cannabis em transtornos esquizofrênicos comparou o uso de canabidiol (CBD) com o tratamento convencional com amissulpirida, um antipsicótico atípico. Este estudo partia de evidências de que uma maior concentração de anandamida, um endocanabinóde, no líquor esteve relacionada a uma menor intensidade de sintomas psicóticos. Sabendo que o CBD inibe a metabolização da anandamida, através da inibição da enzima FAAH, aumentando assim o tônus do sistema endocanabinoide, o CBD poderia ocasionar uma diminuição de sintomas psicóticos. O estudo em questão evidenciou um efeito antipsicótico do canabidiol quando administrado em altíssimas doses, além de maior tolerabilidade quando comparado com antipsicóticos convencionais.
Apesar de tais evidências serem bastante animadoras, dada a frustração que o tratamento para esquizofrenia usualmente gera, ainda não há orientação formal para o uso de CBD como um antipsicótico em monoterapia. Ademais, justifica-se a cautela em relação ao uso de THC por esta população.
Contudo, podemos afirmar que há potencial do canabidiol como um tratamento adjuvante no contexto de psicose, devendo ser estudada de perto essa abordagem, da qual muitos pacientes podem se beneficiar. Além disso, a presença de comorbidades acompanhando um quadro psicótico não é rara – a exemplo de transtornos do sono, sintomas ansiosos e transtorno por uso de substâncias. O CBD pode ser aplicado, com segurança, para mitigar os sintomas relacionados a essas comorbidades comuns, além de poder representar uma estratégia de redução de danos interessante, diminuindo assim a polifarmácia de psicotrópicos.
A cada dia, mais estudos avançam no universo da canabinologia, ampliando nossa compreensão sobre esta complexa planta que, nem vilã, nem heroína, consolidase como fundamental para a prática psiquiátrica atualmente.
Referencias bibliográficas:
- Patel S J, Khan S, M S, et al. (July 21, 2020) The Association Between Cannabis Use and Schizophrenia: Causative or Curative? A Systematic Review. Cureus 12(7): e9309. DOI 10.7759/cureus.9309
- Saito, A.; Ballinger, M.D.; Pletnikov, M.V.; Wong, D.F.; Kamiya, A. Endocannabinoid system: Potential novel targets for treatment of schizophrenia. Neurobiol. Dis. 2013, 53, 10–17
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- García-Gutiérrez M , Navarrete F, Gasparyan A, Austrich-Olivares A, Sala F , Manzanares J Cannabidiol: A Potential New Alternative for the Treatment of Anxiety, Depression, and Psychotic Disorders. Biomolecules 2020, 10, 1575; doi:10.3390/biom10111575
* Dra. Júlia Ferreira Leite Garcia – Diretora técnica da clínica Gravital Rio de Janeiro – CRM 520103841-9/RJ – Médica graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ em 2015, com residência Médica em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria da UFRJ – IPUB. Desde 2018, atua como psiquiatra em prática particular, desempenha atividades em coletivos terapêuticos multiprofissionais, e também como plantonista em emergência clínica adulta hospitalar. Também tem experiência como médica generalista em equipe da estratégia de saúde da família. Possui certificação internacional em terapias a base de cannabis, na qual atua em diversas condições clínicas, com destaque para autismo, transtornos de ansiedade, distúrbios alimentares, transtorno obsessivo-compulsivo, depressão e insônia.