Para abrir os trabalhos como colunista do portal de notícias Cannabis Medicinal – que aceito com muita honra e responsabilidade – começo escrevendo sobre o direito à intimidade e à vida privada, direitos fundamentais resguardados pela Constituição de 1988. Essa previsão legal mencionada no artigo 5º, inciso X da Carta Magna, diz que é inviolável a vida privada, a honra, a imagem, o direito à intimidade e o direito do indivíduo de se autodeterminar, sendo livre a praticar qualquer conduta que não ultrapasse a sua esfera íntima. Mas então por que a chamada Lei de Drogas (11.343/2006) em seu artigo 28 criminaliza a conduta do usuário?
O assunto do dia é o Recurso Extraordinário n° 635.659, que propõe revogar o dispositivo citado acima. Diz o artigo 28 que: quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal será submetido à advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa. Em vigor desde 2006, o texto vem sendo questionado na Suprema Corte há quase duas décadas, ainda sem definição.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar o Recurso interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo contra uma condenação criminal pelo porte de 3 gramas de maconha. Na ação, o Defensor Público, Rafael Muneratti, argumentou ser inconstitucional a criminalização de condutas que dizem respeito à intimidade e à vida privada, direitos resguardados pela Lei Maior. “Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes”, sustentou Muneratti.
Os argumentos convenceram o ministro Gilmar Mendes, relator da ação de repercussão geral reconhecida – quando a decisão do plenário do STF passa a valer para todos os demais tribunais de justiça do país. Em seu voto, Mendes sustentou que a criminalização imposta pelo artigo 28 da Lei de Drogas estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos. Para o ministro, a punição ainda é desproporcional, ineficaz no combate às drogas, além de infligir o direito constitucional à personalidade.
Além do relator, os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso também votaram pela inconstitucionalidade do artigo 28. Entretanto, restringiram a descriminalização ao uso e porte exclusivamente em relação à cannabis (maconha), ficando dessa forma mantida a proibição do porte e uso de demais drogas ilícitas. Na intenção de estabelecer critérios objetivos para diferenciar usuário de traficante, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu o limite de até 25 gramas de maconha como parâmetro para caracterizar o uso. Hoje, a Lei de Drogas não define critérios objetivos, o texto genérico abre margem para a interpretação pessoal do magistrado ao estabelecer em seu artigo 33 que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Essa falta de regras claras para estabelecer a diferença entre consumo e tráfico tem abarrotado os presídios brasileiros de jovens negros e pobres, principalmente. Os números comprovam essa dura realidade e, o que é pior, demonstram que os direitos e garantias do sistema penal são diariamente violados. Hoje, na Bahia, metade dos encarcerados são presos provisórios (47,96%) à espera de julgamento, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). No cenário nacional quase 1/3 dos crimes cometidos pela população carcerária masculina diz respeito ao que os juízes consideraram tráfico de drogas e, isso pode significar a posse tanto 3g como 300g, por exemplo.
De volta ao Recurso Extraordinário, a Suprema Corte demonstra omissão. O julgamento,que pode beneficiar centenas de encarcerados, consumidores e pacientes da cannabis medicinal, está parado desde a morte do ministro Teori Zavascki, e agora aguarda apresentação de voto por parte do ministro Alexandre de Moraes, que substituiu o magistrado.Em 2018, o ministro Moraes liberou a pauta que estava suspensa desde setembro de 2015, mas a ação continua engavetada. Sabemos que, em ano de eleição, pautas que são consideradas “delicadas” porque envolvem preconceito e ignorância (no sentido de desconhecimento) devem ficar para depois.
Neste contexto, a InformaCANN não deixará de cumprir o seu papel. Sabemos que o presidente da Suprema Corte, Luiz Fux, tem a prerrogativa de pautar as ações para deliberação plenária. E nós estaremos monitorando, cobrando e noticiando essa pauta tão importante para o país.
*Manuela Borges é jornalista especializada em política desde 2003, com Mestrado em Ciência da Informação (UnB), Graduação em Cannabis Medicinal (Unyleya) e Assessoria em Comunicação Pública (IESB). Manuela também é paciente de cannabis medicinal.