Relatório da agência e denúncia sobre vapes expõem contradições e desafios regulatórios no país
Quem acompanha os pareceres e notas técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) percebe um ponto comum: a vaporização, hoje, não é reconhecida como via terapêutica para o uso medicinal da cannabis no Brasil. Esse entendimento foi reafirmado tanto na Nota Técnica nº 35/2023, que proibiu a importação de flores in natura, quanto na Nota Técnica nº 76/2025, que vetou os extratos concentrados.
Apesar disso, o próprio relatório de impacto regulatório da Anvisa reconhece a possibilidade de revisão desse posicionamento — algo que, até agora, não se concretizou. O impasse deixa pacientes de diversas condições clínicas sem acesso a alternativas que proporcionem absorção rápida dos canabinoides, essencial em quadros de crises epilépticas, dores intensas ou ansiedade aguda. Muitos acabam recorrendo a associações de pacientes com autorização específica para o uso de flores ou, diante da urgência, ao mercado ilegal.
Recentemente, uma denúncia formal apresentada à agência reforçou a complexidade do cenário. O documento aponta irregularidades na importação e comercialização de dispositivos eletrônicos para inalação — vapes e cartuchos de óleo de cannabis — sem registro sanitário e, em alguns casos, com licenças de fabricação vencidas no país de origem. A denúncia cita empresas estrangeiras, como a norte-americana Vain Labs MC Nutraceuticals, e alega que produtos contendo THC e CBD vêm sendo introduzidos no mercado nacional sem controle de pureza, rotulagem adequada ou comprovação de segurança.
A legislação brasileira é clara ao proibir tanto os dispositivos eletrônicos para fumar — conforme a RDC nº 46/2009 — quanto a importação e venda de produtos derivados de cannabis sem autorização individual da Anvisa, como determina a RDC nº 660/2022. A denúncia pede que a agência apure as atividades de importação e venda de vapes, identifique os responsáveis e acione órgãos como Polícia Federal e Ministério Público Federal.
Mas o debate vai além da legalidade. Segundo o advogado antiproibicionista Natan Duek, é preciso questionar os efeitos práticos de uma política que, ao restringir o acesso a métodos de uso mais adequados para certos pacientes, acaba empurrando pessoas vulneráveis para caminhos inseguros. “Há pacientes que dependem de uma via de absorção rápida dos canabinoides. Quando o Estado não oferece meios seguros, essas pessoas acabam buscando alternativas fora da legalidade, movidas pela dor e pelo desespero”, afirmou.
O caso dos vapes expõe também uma contradição: enquanto a comercialização de cigarros eletrônicos sem substâncias psicoativas é proibida, alguns vaporizadores com extratos ricos em canabinoides são vendidos com alegações medicinais. Parte desses produtos, no entanto, contém canabinoides semissintéticos e carece de estudos de segurança, podendo apresentar resíduos tóxicos e metais pesados.
A discussão reacende a necessidade de o Brasil revisar sua postura sobre as vias de administração da cannabis medicinal. Países como Alemanha e Colômbia já reconhecem o uso de flores in natura vaporizadas como forma terapêutica legítima, com controle de qualidade e acompanhamento médico. No entanto, por aqui, o tema ainda é tratado com preconceito e confusão entre uso terapêutico e uso recreativo.
Para Duek, a resistência institucional reflete uma lógica proibicionista que ignora a realidade dos pacientes. “Se há pessoas buscando alívio para o sofrimento físico ou psíquico, por que negar-lhes formas seguras e eficazes de tratamento? O papel da regulação deve ser proteger, não punir quem busca viver com dignidade”, conclui.
