Estudo publicado na Neuropsychopharmacology identifica o gene ligado ao comportamento exploratório e ajuda a diferenciar uso ocasional de dependência
O debate sobre cannabis costuma se dividir entre quem enxerga riscos e quem defende seu potencial terapêutico ou simbólico. Mas uma pesquisa publicada pela revista científica Neuropsychopharmacology traz um olhar que vai além dos estereótipos e chega ao DNA dos usuários. O estudo “The genetics of Cannabis lifetime use”, conduzido por pesquisadores da Universidade de Yale (EUA), investigou os fatores biológicos que aumentam a probabilidade de uma pessoa experimentar a planta ao longo da vida, sem relação direta com dependência.
A análise reuniu dados genéticos de mais de 250 mil pessoas de diferentes ancestralidades, em um dos maiores levantamentos já publicados sobre o tema. O principal achado foi a forte associação entre o uso vitalício de cannabis (CanLU) e o gene CADM2. A variante mais relevante, CADM2*rs7609594, confirma estudos anteriores que já relacionavam essa região genética a comportamentos exploratórios e impulsividade positiva.
O CADM2 é responsável por codificar uma proteína essencial para a comunicação entre neurônios. Alterações nesse gene estão associadas à sensibilidade à recompensa e à busca por novidades, o que levou alguns neurocientistas a apelidá-lo de “gene da curiosidade”. É o mesmo mecanismo biológico que influencia a vontade de experimentar novos alimentos, culturas ou ideias. O estudo reforça que não existe um “gene da maconha”, mas um conjunto de características evolutivas ligadas à exploração que pode aumentar a probabilidade de alguém testar substâncias psicoativas.
Curiosidade não é dependência
A pesquisa também diferenciou o uso vitalício de cannabis do Transtorno por Uso de Cannabis (CanUD), caracterizado pelo consumo compulsivo. Embora exista correlação moderada entre ambos (rg = 0,58), os loci genéticos associados ao uso ocasional são distintos daqueles ligados ao uso problemático.
Enquanto o CanUD aparece fortemente relacionado a transtornos psiquiátricos, distúrbios do sono e doenças cardiovasculares, o CanLU se associa a traços exploratórios e até maior escolaridade. O dado contrasta com padrões observados no tabagismo, que costuma apresentar correlação negativa com educação. Os autores sugerem que isso pode refletir mudanças culturais e redução do estigma entre pessoas mais escolarizadas. O estudo também encontrou diferenças genéticas importantes entre o uso vitalício de cannabis e o uso vitalício de tabaco.
Relevância clínica e impacto social
As descobertas têm implicações para a medicina canabinoide e a farmacogenética. Variações em genes como CADM2, CYP2C19 e FAAH podem influenciar a metabolização e a resposta individual a compostos como THC e CBD, o que ajuda a explicar por que alguns pacientes têm boa resposta terapêutica enquanto outros percebem efeitos mais discretos.
Ao diferenciar os mecanismos genéticos do uso e da dependência, o estudo também contribui para o combate ao estigma. Experimentar a planta não significa predisposição automática ao vício, já que a dependência envolve vias biológicas distintas.
Para políticas públicas, os pesquisadores destacam que estratégias de prevenção e regulação precisam distinguir o usuário ocasional daquele com vulnerabilidade à dependência. Segundo os autores, o uso vitalício de cannabis não deve ser tratado apenas como escolha moral ou social, mas como expressão de aspectos da biologia humana ligados à curiosidade.
Compreender essa base genética não justifica nem incentiva o consumo, mas permite abordagens mais equilibradas, baseadas em evidências e menos influenciadas por preconceitos.
